segunda-feira, 21 de setembro de 2009

E-crime motiva repressão policial

No Pará, 38 prisões foram efetuadas em operações da Polícia Civil de abril até agora. Combate contrasta com falta de legislação específica para crimes na internet.

GUTO LOBATO
Da Redação

(Jornal Amazônia - Edição de 20 de setembro de 2009)

É bem sabido que os avanços da tecnologia não trouxeram apenas benefícios ao homem. A difusão da internet e a livre circulação de informações serviram como um prato cheio para que o crime organizado se estabelecesse no meio virtual, caracterizando uma nova modalidade que já preocupa autoridades de segurança pública: os chamados crimes tecnológicos ou cibernéticos (e-crime). Além de motivar ampla discussão no Legislativo – ainda não há lei específica sobre o assunto no Brasil –, estes delitos têm tido participação crescente nas estatísticas policiais: só no Pará, 38 prisões foram efetuadas nos últimos cinco meses em operações da Delegacia de Repressão a Crimes Tecnológicos (DRCT), vinculada à Divisão de Repressão ao Crime Organizado (DRCO) da Polícia Civil.

O avanço dos crimes tecnológicos no Pará é resultado de um processo que, de forma geral, atinge todos os Estados brasileiros – e, ao contrário do que o senso comum indica, vai muito além das capitais e grandes centros urbanos. Especialistas acreditam que mais de 17 mil processos ligados ao Direito Eletrônico tenham ido parar na esfera judicial no Brasil. Da mesma forma, o Ministério Público Federal (MPF) apontou crescimento de 318% no número de investigações de crimes de internet entre os anos de 2007 e 2008. É uma evidência de que o problema, antes restrito a países e regiões desenvolvidos, cresce confome o aumento da acessibilidade à rede.

Duas quadrilhas de estelionatários que foram desmanteladas recentemente por meio de operações coordenadas pela DRCT demonstram a disseminação do e-crime no Pará. A primeira, liderada por um homem identificado como Júlio César Rodrigues, possuía sedes em Belém e em outras cidades do norte e nordeste. A organização criminosa "caiu” ao final de julho e era especializada em aplicar golpes por meio de dois sites que anunciavam a venda de carros.

Tentadas pelos preços baixos e pelas possibilidades de financiamento, as vítimas visitavam os endereços - www.crisautos.com.br e www.empresasfinavel.com.br - e se deparavam com uma estrutura de atendimento completa – até Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e venda online a “empresa” possuía. Após formalizar a compra via contratos e recibos por e-mail, no entanto, descobria-se que não havia veículo algum. Quem insistisse em tirar satisfações por telefone era alvo de deboche ou até recebia ameaças por parte dos golpistas.

A outra quadrilha – que está tendo “baixas” em seus integrantes até hoje – tinha sede no pequeno município de Curuçá, no nordeste paraense, onde um casal atraía pessoas aposentadas com propostas de recebimento de benefícios do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Eles obtiveram dezenas de documentos pessoais e dados de cartão de crédito das vítimas para realizar compras, financiamentos e desvios bancários pela internet. Um dos hackers responsáveis por encaminhar o esquema criminoso na internet já foi capturado, mas a polícia acredita que haja mais envolvidos espalhados pelo Estado.

“A verdade é que, com o acesso à internet nas cidades do interior, o crime cibernético se disseminou fora das capitais. Isso torna a ação deles mais difusa e exige maior domínio à hora da investigação policial”, explica a delegada Beatriz Machado, titular da DRCT. Impossível não relacionar tais palavras, por sinal, à situação vivenciada em Parauapebas, no sudeste paraense. Palco de um dos momentos cruciais da operação “Cavalo de Troia”, executada pela Polícia Federal em 2005 e que resultou em mais de 160 prisões, o município de pouco mais de 150 mil habitantes é conhecido como “paraíso dos hackers” até hoje por ter sido o local em que “nasceu” tal atividade no País, sob o comando de Fábio Florêncio da Silva.

Primeiro brasileiro a ser preso por cometer crimes do tipo, ele comandou e treinou um sem-número de golpistas e redes criminosas no Pará e em outros Estados – com sede em Parauapebas, longe dos olhares atentos da capital. Ou seja: não só tais crimes existem no interior, como muitas vezes partem dele.

Investigações esbarram em questões legais

As 38 prisões efetuadas pela DRCT desde sua criação, em abril deste ano, resultam de pelo menos nove operações, boa parte delas concentradas fora da capital. Dada a natureza dos crimes praticados pela internet, todo trabalho de investigação na unidade é longo – leva em média de dois a três meses para ser concluído –, trabalhoso e esbarra em uma série de questões legais. “Há uma dificuldade em se identificar o autor dos crimes pela internet, já que o uso do anonimato, de identidades falsas e de ‘laranjas’ é prática comum. Hoje, quem comete crimes tecnológicos já possui conhecimento técnico para fazê-lo sem deixar muitas pistas”, avalia a delegada.

A burocracia em torno do trabalho investigativo é outro fator. As quebras de sigilo de dados cadastrais e de contas, por exemplo, dependem de ordem judicial para serem feitas pela polícia. Além disso, o apoio de empresas que prestam serviços na internet é essencial para que a apuração de dados e informações seja feita de forma mais célere. “Com a CPI da Pedofilia, conseguiu-se estabelecer uma boa parceria entre o Google e a polícia, por exemplo, à hora de se fornecer informações e dados cadastrais. Hoje também temos o apoio da Microsoft, que envia as informações quando há solicitação das autoridades competentes”, relata a delegada. “Não fosse isso, teríamos muito mais dificuldade em chegar aos líderes das quadrilhas e grupos”.

Legislação brasileira ainda não contempla crimes tecnológicos

A falta de um dispositivo legal para enquadrar os crimes tecnológicos gera polêmica até hoje Legislativo e no Judiciário. Há pelo menos três projetos de lei à espera de votação no Senado que estabelecem tipificações penais e mudanças nas sanções restritivas de liberdade ligadas aos crimes de internet (veja quadro). Aos olhos da lei, no entanto, o crime praticado por meio da internet até hoje não difere do convencional. Casos de sites que vendem produtos inexistentes, golpistas que fazem clonagem de cartões e falsificação de documentos e hackers que desviam dinheiro de contas bancárias são enquadrados na Justiça no próprio Código Penal brasileiro, sem ter o uso da web como agravante.

As tipificações mais comuns são estelionato (artigo 171), furto qualificado (art. 155), falsa identidade (art. 307) e falsificações de documento público e privado (art. 297) decorrentes do uso de dados coletados na internet. Um hacker, por exemplo, pode ser indiciado por estelionato e furto qualificado ao invadir o sistema de um banco e fazer transações em contas de terceiros. Há, também, um grande volume de denúncias por calúnia (art. 138), injúria (art. 140) e difamação (art. 139), geralmente associadas a situações geradas em sites de relacionamentos como Orkut e Facebook. Só a DRCT da Polícia Civil do Pará recebe uma média de dez denúncias desse tipo por dia, segundo a delegada Beatriz. “São casos que nem sempre estão ligados ao crime organizado, mas necessariamente têm a ver com o uso criminoso das ferramentas eletrônicas, como a criação de perfis falsos com informações difamatórias, o uso indevido de imagem, entre outros”, explica.

Além de conceder penas iguais às do criminoso “comum”, a aplicação do Código Penal aos criminosos da internet deixa algumas “brechas” relativas a crimes típicos, como o vazamento de informações e a invasão de sistemas de domínio restrito. O promotor público Milton Lobo, do Grupo Especial de Prevenção e Repressão às Organizações Criminosas (Geproc) do Ministério Público do Estado (MPE), diz que quase todos os crimes denunciados pela polícia ao MPE acabam resultando em processos na Justiça. Por conta disto, vê urgência na aprovação de uma legislação específica para eles.

“Os recursos a que podemos recorrer em uma denúncia de crime pela internet são muito escassos. Há o estelionato, o furto, a formação de quadrilha no Código Penal, mas não existe agravante no uso da internet, tampouco tipificação para delitos mais recentes, como a invasão de sistemas. É sinal de que o crime evoluiu rápido e a lei não o acompanhou”, diz. “Se pensarmos no raciocínio do criminoso, é muito melhor cometer crimes nesse estilo. É muito mais ‘sutil’ para eles entrar em um sistema bancário e desviar dinheiro para suas contas do que entrar em uma agência e assaltá-la. Não há sangue, tampouco comoção popular”, argumenta.

Transações comerciais são foco de preocupação

Líderes em denúncias junto à Polícia Civil e a órgãos como os Ministérios Públicos Estadual (MPE) e Federal (MPF), os crimes ligados a transações comerciais na internet têm custado caro para suas vítimas. Dados oficiais apontam que, só em clonagens de cartões de crédito feitas a partir de dados roubados por hackers em fóruns e lojas virtuais, um prejuízo superior a R$ 31 milhões tenha sido causado aos brasileiros no primeiro semestre deste ano. Embora não haja números oficiais no Pará sobre o assunto, a Polícia Civil reconhece grande volume de denúncias relacionadas a golpes. A quadrilha da venda de carros, por exemplo, fez mais de uma dezena de vítimas no Estado inteiro.

As transações de cartão de crédito online, segundo especialistas, são especialmente arriscadas, já que os dados fornecidos durante as operações podem ser interceptados com facilidade por um hacker bem treinado. Independentemente de serem feitas em domínios seguros (como o https://) ou em sites de aparência confiável, é preciso que se tenha em mente que o perigo das compras pela internet é sempre alto.

“Sempre recomendamos que o usuário, ao fazer compras em sites, busque saber se a tal empresa tem CNPJ, se possui sede, telefone de contato e/ou serviços de atendimento. E, mesmo assim, há chance de haver golpe, como foi no caso da quadrilha que fingia vender carros”, diz a delegada Beatriz Machado. “Em caso de suspeita, o melhor é não fazer a compra. Ou então salvar a página da conclusão da transação, com o endereço URL, para poder mostrá-la à hora de registrar uma ocorrência na polícia”, recomenda.

A venda de produtos inexistentes – de livros e discos até imóveis e carros – em lojas virtuais é outro ponto preocupante. O promotor Milton Lobo reforça que a melhor forma de evitar cair em golpes é não se deslumbrar com promoções mirabolantes ou “propostas irrecusáveis”. “Costumamos dizer que o estelionato é um crime em que ambas as partes querem ter algum tipo de vantagem, só que o criminoso é mais esperto que a vítima”, acredita. “Quando uma coisa é indicada abaixo de seu valor de custo em um site, é óbvio que tem algo errado. Um celular de R$ 3 mil que é vendido em uma loja virtual a R$ 800 é um fato muito suspeito. Se recair na cobiça, a vítima pode ver o barato se tornar caro”, exemplifica Lobo.

Entenda os crimes tecnológicos

O que são?

Crimes contra o patrimônio, a honra, a paz pública e/ou a fé pública praticados em meios informáticos (internet).

Quais são os mais comuns?

Estelionato (artigo 171 do Código Penal), furto qualificado (art. 155), falsa identidade (art. 307), calúnia (art. 138), injúria (art. 140) e difamação (art. 139).

Quem investiga?

A Polícia Federal (PF) foi pioneira nas investigações de crimes online, mas as polícias civis podem ter divisões especializadas na área. No Pará, os casos são atendidos pela Delegacia de Repressão a Crimes Tecnológicos (DRCT), vinculada à PC do Estado. Desde a criação da unidade, em abril, nove operações já foram realizadas: “Clone”, “Conexão” I e II, “Androide” I e II, “Guarda”, “Cegonha”, “Rede digital” e “Crédito digital”. As duas últimas ainda estão em andamento.

Como os criminosos são enquadrados na lei, atualmente?

Hoje, todos os casos são tipificados com base no Código Penal brasileiro, que cobre total ou parcialmente 95% dos tipos de crime com seus dispositivos. Há, porém, algumas modalides que estão sem enquadramento na legislação vigente, como a invasão de sistemas e o vazamento de informações.

Em caso de mudança na lei, como ficaria?

Há pelo menos três projetos de lei à espera de aprovação no Senado. As principais mudanças, com o sancionamento das leis, seriam relativas às penas aplicadas aos acusados de cometer crime na internet – o uso de anonimato, nome suposto ou identidade de terceiros pelo criminoso durante uma fraude na web, por exemplo, aumentaria sua pena em até um sexto. As penas de calúnia, injúria e difamação também seriam aumentadas em dois terços, caso aplicadas a casos na internet. Fora, isso, uma série de tipificações penais seria criada para o meio eletrônico. Confira algumas:

- Dano por difusão de vírus eletrônico;

- Acesso indevido a dispositivo de comunicação;

- Obtenção, guarda e fornecimento de informação eletrônica sem autorização;

- Atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública;

- Furto qualificado com uso de meios eletrônicos;

- Falsificação de cartão de crédito ou débito ou qualquer dispositivo de armazenamento de informações.

Como se prevenir?

- Evite fazer transações com cartões de crédito ou débito na internet;

- Ao realizar alguma compra na web, verifique se o site de venda de produtos ou serviços é de uma empresa, se esta possui CNPJ, se possui endereço fixo e se o site já foi denunciado por alguém em algum fórum de discussão online. E sempre desconfie de preços muito baixos;

- Se tiver mesmo de fazer uma transação de cartão, salve o endereço URL e a página em que ela foi realizada, gravando o endereço em alguma mídia portátil (CD, DVD ou pen drive). Assim, no caso de ser fraudado, você tem pistas para oferecer à polícia;

- Evite abrir e-mails suspeitos, principalmente quando enviados por supostos órgãos oficiais, como a Receita Federal e o Tribunal Regional Eleitoral (TRE), ou por bancos. Eles só costumam enviar correio eletrônico quando solicitados;

- Mantenha o antivírus de seu computador atualizado e evite entrar em sites desprotegidos;

- Tome cuidado com sua imagem e com informações pessoais em sites de relacionamentos. Crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) costumam se basear sobre dadosfornecidos pela própria vítima nestes espaços;

Como denunciar?

- Na internet, há pelo menos dois sites especializados em denúncias de crimes online: http://www.denunciar.org.br/ e http://www.safernet.org.br/;

- Casos no Pará podem ser denunciados para investigação na DRCT da Polícia Civil indo à sede da DRCO, que fica na travessa Vileta, nº 1.100, entre Marquês de Herval e Pedro Miranda, no bairro da Pedreira, ou entrando em contato pelos telefones (91) 4006-8114 / 8120 / 8121 e 8106;

- Informações também podem ser fornecidas pelo Disque Denúncia (181) ou ao Geproc, do MPE, pelo telefone (91) 4006-3477.

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