domingo, 18 de outubro de 2009

Pará: rota de passagem para o pó

Rede internacional de tráfico de cocaína possui pelo menos três rotas que passam pelo Estado. Hidrovias e rodovias são usadas para escoar droga para Nordeste brasileiro e exterior.

GUTO LOBATO
Da Redação

O tempo é de baixas para quem atua na rede internacional de tráfico de cocaína que tem o Estado do Pará como ponto de passagem. Operações executadas pelas polícias Civil (PC) e Federal (PF) nos últimos trinta dias, com apoio do Ministério Público Federal (MPF), resultaram em pelo menos vinte prisões ou condenações de traficantes sediados no Estado. Todos atuavam no mercado de comercialização de cocaína pura procedente de países latino-americanos como Colômbia, Peru e Bolívia. A situação deixa bem claro que, mesmo não sendo um pólo produtor, o Pará é rota de passagem da droga - ou, em menor medida, concentra mercados de abastecimento, como no caso da Região Metropolitana de Belém (RMB).

Ao menos para a polícia, isso não é grande novidade. Três grandes rotas do tráfico internacional que passam pelo Estado já foram identificadas, todas associadas à cocaína - droga que tem como principal centro de produção na América Latina países vizinhos ou fronteiriços do Brasil. O percurso que concentra os grupos criminosos mais articulados parte de Tabatinga, no Amazonas, e chega ao Pará por rotas hidroviárias. Situado ao lado da cidade de Letícia, na Colômbia, o município amazonense é alvo da ação de grupos que mantêm sedes na fronteira.

Por meio de contatos com os produtores colombianos, os traficantes fazem transações financeiras, adquirem o material e o enviam rumo ao Pará por transporte hidroviário - seja nos cascos e salas de máquinas de embarcações, seja escondido em fundos falsos, recheios de aparelhos eletrônicos e móveis ou mesmo em roupas. O pó faz "escala" em Santarém, no Oeste do Estado, e em seguida parte para municípios da Ilha do Marajó como Breves, Soure e Gurupá, onde é reenviado para Belém.

As outras duas rotas são "secas" - feitas por terra - e vêm do Peru e da Bolívia. A primeira parte dos municípios de Brasileia e Rio Branco, no Acre, com cocaína peruana rumo ao Pará. Já a segunda começa nos municípios de Pontes e Lacerda, Conquista do Oeste e Nova Lacerda, no Mato Grosso, e termina na capital paraense, sempre via rodovias federais, trazendo entorpecente produzido na Bolívia. De qualquer forma, Belém nem sempre é o destino final: uma pequena parte do pó é aproveitada para abastecer o mercado local, mas a maioria acaba indo para cidades como São Luís (MA), Fortaleza (CE) e até São Paulo (SP), majoritariamente por estrada.

Os efeitos destas redes no Pará são bem conhecidos: concentração de bocas de fumo nos principais centros urbanos - Santarém, Belém, Castanhal, Ananindeua, Marabá, etc. -, aumento da violência e, a longo prazo, a criação de redes criminosas com contatos internacionais sediadas no Estado. As polícias Civil e Federal vêm tentando desmontar o esquema, mas a tarefa não é nada fácil: apesar de obedecer a um padrão, as quadrilhas sempre encontram alternativas para desviar rotas e camuflar os entorpecentes para enviá-los sem deixar rastros.

"Conforme apertamos o cerco em uma rota, eles logo descobrem um caminho alternativo, uma nova forma de esconder. Some-se isso ao pequeno efetivo das polícias, à dimensão do Estado, e temos em mãos o desafio de coibir o tráfico associado às redes internacionais", resume o delegado Madson Vieira, da PF. Também conspiram a favor dos criminosos a capilaridade das vias hidroviárias amazônicas e a baixa fiscalização nas estradas. "É um trabalho de controle, nunca de erradicação total. Nós 'derretemos um gelo' e eles logo aparecem com outro carregamento ainda maior", avalia o delegado Hennisson Jacob, da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), vinculada à Divisão de Repressão ao Crime Organizado (DRCO) da Polícia Civil.

Operação "Letícia" desmantelou família de traficantes

As prisões efetuadas nos últimos trinta dias são resultado de um longo trabalho de investigação das polícias Civil e Federal com apoio do Ministério Público Federal. Das operações recentes, a que resultou em mais prisões foi a "Letícia", cuja etapa final transcorreu em 18 de setembro. No total, quinze prisões foram executadas por meio da apuração da grande rede que "importa" cocaína da Colômbia por meio da fronteira do país com o Estado do Amazonas. O detalhe impressionante é que, na última ação, descobriu-se que cinco dos acusados pertenciam à mesma família.

Sob o comando do patriarca Eliézer de Oliveira Pereira, 51, o "Zezé", a família composta por Rizoneide de Souza Pereira, 47, Keiseane de Souza Pereira, 24, Kelvin de Souza Pereira, 22, e Kelson Kennedy Pereira era um dos nomes fortes do tráfico internacional. Com bases na cidade de Tabatinga (AM) e no bairro da Cidade Nova, em Ananindeua, onde morava, a família Pereira liderou por muito tempo o mercado de cocaína na Grande Belém - tanto que a área próxima à sua casa ficou conhecida pelo nome de "Portelinha", em alusão à favela de uma telenovela exibida em 2007 na Rede Globo.

"Zezé" era temido no mundo do crime e, além de abastecer o mercado local, também enviava parte da droga para Fortaleza, de onde remessas saíam periodicamente para o resto do País e, inclusive, para a Europa, segundo apontam evidências apuradas pela polícia. A condenação de toda a família foi comunicada ao início de setembro pelo juiz federal Rubens Rollo D´Oliveira, da 3ª Vara Especializada em Ações Criminais, sendo que as prisões foram cumpridas uma semana depois, na própria residência de "Zezé". Recentemente, eles conseguiram responder ao processo em liberdade.

"Um fato que nos chamou a atenção foi o envolvimento da família inteira na rede de tráfico. Isso é cada vez mais comum. E não é apenas na receptação da droga aqui em Belém, como também na negociação com os traficantes colombianos e no recrutamento de transportadores da droga da fronteira até a capital", diz a procuradora da República Maria Clara Noleto, responsável pelo caso no MPF. "A verdade é que este mercado é extremamente complexo, conta com a ação de vários grupos, e precisa ser investigado por todas as esferas. Sabemos que a ação de algumas quadrilhas é apenas a ponta de um grande iceberg", ressalta.

Dificuldades nas investigações apontam especialização da rede

Segundo a procuradora, nos últimos dois anos, cerca de 40 prisões foram efetuadas nas maiores operações federais de combate ao tráfico de cocaína - a "Letícia", a "Marisco", a "Alcateia" e a "Mato Grosso". Todas estas já resultaram em prisões de caráter provisório ou em condenações - como no caso da "Letícia". Outra operação executada recentemente foi a "Miriti", que resultou em cinco prisões, também no mês de setembro.

As denúncias encaminhadas ao MPF são apuradas pelas procuradorias responsáveis em parceria com as polícias Federal ou Civil, dependendo da amplitude dos casos. "Às vezes contamos, também, com a colaboração da Interpol e das polícias boliviana, peruana e colombiana, até porque há criminosos de outros países envolvidos", aponta.

Fora as quatro grandes operações executadas, Maria Clara Noleto aponta que há outras investigações sigilosas em curso - algumas, prestes a ter encaminhamento na Justiça Federal, com mais denúncias e pedidos de prisão. Obter provas e indícios do envolvimento com a rede de tráfico, no entanto, é um trabalho complexo e de difícil apuração.

"As investigações são longas e envolvem o trabalho conjunto das polícias e do Judiciário. É um processo de longa duração, por conta das ações fragmentadas e cuidadosas dos grupos", aponta. "No caso da operação 'Letícia', por exemplo, temos seis acusados cujas condenações não foram decretadas pela Justiça Federal, por falta de provas. Mas vamos tentar obter estas condenações novamente", conclui a procuradora.

Polícia Civil já apreendeu 270 kg de cocaína neste ano

O trabalho da Polícia Civil do Pará também já resultou em uma série de apreensões de grande porte associadas à rede internacional de tráfico de cocaína. O delegado João Bosco, diretor da Divisão de Repressão ao Crime Organizado (DRCO), aponta que, só no ano de 2008, cerca de uma tonelada de cocaína foi apreendida pela PC. Até setembro de 2009, o montante já chega a 270 kg. "Isso foi resultado de uma série de operações de desmantelamento de quadrilhas sediadas na capital e no interior, como a 'Leão da terra', a 'Armageddon', a 'Mosaico' e e a própria 'Letícia', que foi executada junto à Polícia Federal", afirma.

À época do Fórum Social Mundial 2009, uma quadrilha foi flagrada em Belém com nada menos que 120 kg de cocaína pura, avaliada em R$ 2,1 milhões. A associação do material com a rede de importação de droga colombiana por rotas fluviais é evidente. Um dos acusados, identificado como José Giovany de Carvalho, permanece foragido da PC e é apontado como um dos líderes do esquema criminoso. Isso sem contar outros traficantes de conhecimento das autoridades, como Ronaldo Oliveira da Silva, o "Camaleão", e Manoel da Lima Rêgo, o "Manoel da feira".

Ambos são "peixes grandes" e têm longo histórico de passagens pela polícia, mas conseguem escapar do xadrez. "Temos esse problema. Fizemos a prisão do 'Manoel da feira' em maio deste ano, mas, sabe-se lá como ou por quê, ele já está solto. Ele lidera uma família de traficantes que tem base nos bairros da Sacramenta, Telégrafo e no distrito de Mosqueiro, já bem conhecida pela polícia, mas consegue uma brecha para escapar da prisão. Ele não passou nem quatro meses atrás das grades", aponta o delegado João Bosco. "Aí precisamos voltar a encontrar subsídios para pegá-los em flagrante na atividade de tráfico", conclui.

Rotas do tráfico de cocaína que passam pelo Pará

1
Onde começa:
Tabatinga (AM)
Por onde passa: Santarém, Breves, Soure, Gurupá, Belém
Destino final: Mercado paraense, Nordeste brasileiro e exterior
Principal percurso: A droga sai de Tabatinga (AM), município na fronteira com a Colômbia, e segue em rota hidroviária até Belém, fazendo escalas em municípios do Pará.

2
Onde começa: Conquista do Oeste (MT), Pontes e Lacerda (MT) e Nova Lacerda (MT)
Por onde passa: Marabá, Belém
Destino final: Mercado paraense, Nordeste brasileiro e exterior
Principal percurso: A droga sai dos municípios na fronteira do Mato Grosso com a Bolívia e segue em rodovias federais até Belém, fazendo escalas em municípios do interior.

3
Onde começa: Brasileia (AC) e Rio Branco (AC)
Por onde passa: Marabá, Santa Maria do Pará, Belém
Destino final: Nordeste brasileiro e exterior
Principal percurso: A droga sai da fronteira do Brasil com Peru e segue em rodovias federais até Belém, fazendo escalas em municípios do interior.

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