domingo, 4 de outubro de 2009

Insatisfação atinge servidores de segurança pública

Estudo revela que maioria dos profissionais de segurança pública não aprova o trabalho que faz. Desmilitarização da PM chega a ser cogitada.

GUTO LOBATO
Da Redação

(Jornal "Amazônia" - Edição de 04/10/2009)

Não é só do lado da sociedade civil que o sistema de segurança pública do Brasil tem sido visto com maus olhos. Contrariando o senso comum de muita gente, um relatório lançado há poucas semanas pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil aponta que boa parte dos servidores de órgãos como as polícias Civil (PC) e Militar (PM) também não aprova o trabalho que faz. Intitulada “O que pensam os profissionais de segurança pública no Brasil”, a pesquisa apontou que 70% dos participantes desejam mudanças urgentes em suas corporações. Grave sinal dos novos tempos, em que a farda não é sinônimo de orgulho para quem a veste – assim como a presença ostensiva da polícia nas ruas não significa segurança total para a população.

Executado a partir de mais de 64 mil questionários preenchidos por policiais, agentes penitenciários, bombeiros e guardas municipais de todo o País, o estudo traz dados, no mínimo, alarmantes - tanto no que tange à satisfação profissional dos servidores quanto em relação a temas polêmicos, como a proposta de desmilitarização da PM, a unificação de polícias e o sistema hierárquico da corporação (veja quadro). O foco do estudo, apresentado durante a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg) em Brasília (DF), no mês de agosto, é em todas as classes de segurança pública, mas concentra os indicadores mais preocupantes na parte relativa às polícias.

A aprovação do modelo dualista de polícia no Brasil, que engloba as corporações civil e militar, é de apenas 20%. Praticamente 50% dos participantes da pesquisa aprovariam a unificação entre PC e PM, tão discutida no alto staff da segurança pública - mais da metade, no entanto, enfatizando que a nova instituição deveria ser civil. Isso resulta de vários fatores: a hierarquia levada às últimas consequências na PM, o código e regimento arcaicos da corporação, os abusos de poder das altas patentes e as condições precárias de trabalho.

Nada menos que 20% dos participantes do estudo da Senasp relataram já ter sofrido tortura - na acepção psicológica do termo, vale ressaltar - no ambiente de trabalho, e 54% dizem ter sido humilhados e desrespeitados por superiores. Da mesma forma, 90% dos PMs reclamam por mais qualificação. Enfim, tudo indica que há uma séria crise de motivação entre os servidores no País - bem semelhante àquela que a sociedade percebe ao se deparar com oficiais truculentos, mal treinados e de comportamento instável nas ruas.

O coronel Mário Solano, chefe do Estado Maior Estratégico (EME) da PM do Pará, reconhece a gravidade de tais dados; porém, para ele, o atual modelo de segurança pública já passa por transformações. "Hoje as coisas já são diferentes. A formação dos policiais agrega disciplinas de polícia comunitária, direitos humanos, cidadania. Não se pode mais ver a polícia, seja civil ou militar, como um órgão meramente repressivo", analisa. "Temos que lembrar que o pensamento da segurança como uma questão de importância é recente. A 1ª Conseg, por exemplo, foi em 2009, enquanto que a 1ª conferência de Saúde do Brasil foi em 1941", aponta. "A verdade é que a valorização dos profissionais de segurança pelo poder público é uma coisa recente", afirma.

Segundo o chefe do EME - que participou da 1ª Conseg em Brasília -, os investimentos na capacitação dos policiais são capazes de reverter boa parte dos indicadores do estudo da Senasp. A formação de praças e oficiais dentro da PM no Pará, por exemplo, recebeu investimentos de R$ 8 milhões no ano de 2008. "Essa é a forma que encontramos de ter policiais mais preparados, instruídos e motivados a trabalhar melhor pela sociedade. Hoje já sabemos que não há progresso para a polícia sem investimentos em educação", acredita.

Em relação a temas polêmicos como a desmilitarização, no entanto, o coronel é enfático: "Primeiro, é preciso saber do que se trata essa 'desmilitarização'. É em relação à formação pedagógica dos praças e oficiais, que seria muito rígida, ou seria uma extinção completa dos militares estaduais? Se for o primeiro caso, não precisa desmilitarizar, porque nossa formação aqui no Pará é feita há anos com base nos princípios da Senasp. E se for o segundo, isso significa que teríamos 500 mil policiais armados e sindicalizados em todo o Brasil. A PM do Pará não aprova tal ideia", diz. "Essa questão precisa ser debatida com todos seus fatores. Não é uma medida que se toma da noite para o dia", opina Solano.

PMs paraenses defendem mudanças, mas não aprovam desmilitarização

Conseguir obter opiniões sobre os dados obtidos na pesquisa do Senasp não é nada fácil na PM do Pará. A verdade é que o medo de represálias de superiores, tão citado ao longo do texto do relatório, aplica-se também à realidade local: nenhum dos agentes entrevistados pela reportagem quis ter seu nome publicado. Nem mesmo os de patentes mais altas, vinculados a destacamentos como o Comando de Policiamento da Capital (CPC) e a Ronda Tática Metropolitana (Rotam), concordam com a identificação.

As conversas tiveram de ser feitas em ambientes reservados, longe do olhar de comandantes, para que fluíssem de forma adequada. O motivo é simples: "Mesmo com todos os mecanismos que temos para defender nossos direitos, não podemos criticar nosso trabalho. Senão somos punidos de forma indireta. Eles não podem nos excluir sem motivo, mas nos mandam para o interior, trocam-nos de setor. Enfim, dificultam nossa vida de todas as formas", diz um policial da 4ª Zona de Policiamento (Zpol), atuante nos bairros da Cremação, Batista Campos, Condor e Jurunas.

Temas como a desmilitarização da PM são discutidos com certa propriedade pelos agentes. Conscientes dos benefícios e dificuldades trazidos pelo vínculo militar, eles frisam, no entanto, que a questão é extremamente complexa e de difícil solução no contexto que se vive no Estado. "Não acredito que seja possível desmilitarizar a polícia do Pará, até porque o treinamento no Exército é essencial para termos noções de hierarquia, além de maior capacidade de lidar com situações que envolvem o risco de vida", diz um capitão da 1ª Zpol, sediada na Seccional Urbana da Sacramenta. “Isso é importante, já que a violência não está dando trégua”, completa.

Outro PM de 28 anos, vinculado à mesma Zpol, sustenta opinião semelhante. "Querendo ou não, a hierarquia é essencial para o trabalho policial. A gente vê, por exemplo, os conflitos que os delegados de Polícia Civil têm com investigadores e escrivães, e isso é um sinal de que eles não têm noção de quem manda e quem obedece. O treinamento militar nos ensina muito disso, a aprender a respeitar os superiores e dar ordens de forma respeitosa aos subordinados", acredita.

Há, no entanto, quem considere o sistema de segurança pública “arcaico” e atrasado em relação ao de outros países. “De uns tempos para cá a situação melhorou porque os PMs buscam mais seus direitos, mas de forma geral tem muito abuso de poder, muita ‘politicagem’ dentro da polícia”, diz um cabo lotado no Comando de Policiamento da Capital (CPC). “É diferente, por exemplo, do que vemos nos Estados Unidos, que tem uma polícia unificada. Esse problema das patentes e das hierarquias excessivas é menor”.

Participante da pesquisa do Senasp, o cabo diz não ter economizado nas críticas ao atual sistema de segurança pública. Mesmo “votando” contra a desmilitarização da PM, ele diz reconhecer que a burocracia desnecessária e os resquícios do rigor militar mais atrapalham que ajudam. “Além de termos de obedecer a uma estrutura de ordem institucional arcaica, não podemos nos organizar em sindicatos, enquanto que a Polícia Civil possui o seu. É o reflexo de um cerceamento das instituições militares por conta do pós-ditadura, que há muito já devia ter sido ajustada”, disse o policial.

"O policial se sente cada vez menos motivado a exercer sua função"

É difícil elencar, em poucas linhas, os motivos para o grau de insatisfação apresentado pelos servidores de segurança pública no estudo da Senasp. Mas um dos indicadores aponta que a falta de qualificação é fator relevante: cerca de 90% dos PMs entrevistados disseram desejar mais cursos de formação e capacitação em segurança pública. A socióloga e mestre em ciência política Jane Melo ressalta que a falta de políticas de capacitação, quando aliada aos baixos salários – 78% dos participantes da pesquisa recebem salários inferiores a R$ 2 mil – e à falta de acompanhamento psicossocial dos servidores, tende a gerar serviços de segurança cada vez mais deficitários.

“A verdade é que observamos que o policial se sente cada vez menos motivado a exercer sua função. Por conta dos baixos salários ele procura ‘bicos’, corre sérios riscos, e na corporação, muitas vezes, é vítima de humilhações e represálias por motivos banais”, avalia. “Com a falta de investimento em capacitação e apoio psicológico, eles tendem a se tornar profissionais mais violentos, sendo, ao mesmo tempo, autores e vítimas dos mais variados tipos de crimes”, completa.

Junto à também socióloga Rosália Corrêa, Jane liderou uma equipe de profissionais das mais diversas áreas – advogados, antropólogos, cientistas políticos, assistentes sociais – durante a elaboração de um estudo avaliativo das condições do sistema de segurança pública no Pará. O trabalho, elaborado pela Universidade da Amazônia (Unama) em parceria com Universidade Federal do Pará (UFPA), Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública do Estado, baseou-se em dados relacionados a casos de violência envolvendo policiais civis e militares entre os anos de 1998 e 2001.

“Violência institucional” assola corporação

A metodologia da pesquisa se concentrou na avaliação de crimes associados a armas de fogo praticados por ou contra os policiais – muitos interpretados pela Justiça como “legítima defesa”. Sem precisar números, a socióloga aponta que se descobriu que boa parte destes crimes estão associados à má formação e às condições de trabalho dos policiais. “Constatamos, no período estudado, que muitos delegados iniciavam seu trabalho sem nunca ter participado de um curso de tiro, por exemplo; que os policiais civis passavam apenas seis meses em formação; e que os PMs da linha de frente – cabos, soldados e sargentos – são os menos preparados da corporação”, diz, frisando que o efetivo policial reduzido – 2,4 mil civis e 13,3 mil PMs em todo o Pará – é outro agravante.

O papel da chamada violência institucional, no entanto, figura como um dos problemas-chave da crise motivacional em corporações como a PM, segundo Jane Melo. “As violências associadas aos abusos de poder gerados dentro de corporações como a PM do Pará são uma realidade”, explica. “É uma inversão de valores, já que a base do trabalho da polícia militarizada é trazer ordem e segurança interna à sociedade a partir da ordem e da organização da corporação. O que vimos, a partir dos casos estudados, é que a hierarquia é usada como arma para promover humilhações, para exercer o domínio, e não para ordenar o policiamento”.

Mesmo assim, é fato que, ao contrário do que muitos pensam, a procura pela carreira de PM não se dá majoritariamente por falta de opção melhor. Cerca de 58% dos PMs e 50% dos policiais civis entrevistados não trocariam de profissão se pudessem “voltar no tempo”, segundo o estudo da Senasp. A maioria deseja se aposentar dentro da corporação. Eles encaram rotinas duras, sofrem ameaças e represálias, recebem salários aquém da média, mas têm apreço pelo que fazem. “É sinal de que, regra geral, não é motivação pessoal que falta para nossas polícias. Falta treinamento, motivação institucional e cumprimento dos regimentos à hora de pôr seu trabalho na prática”, analisa a socióloga.

Entenda a pesquisa

- A pesquisa "O que pensam os profissionais de segurança pública no Brasil" foi realizada nos meses de maio e abril deste ano pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD);

- Os dados serviram como base para as discussões da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), transcorrida em Brasília (DF) no mês de agosto;

- O material pode ser acessado na seção de estatística do site do Ministério da Justiça (http://www.mj.gov.br) ou no site do PNUD (http://www.pnud.org.br/home);

- Participaram 64 mil agentes das polícias Civil (PC) e Militar (PM), dos Bombeiros Militares, das Guardas Municipais, dos centros de perícia e de sistemas penitenciários de todo o país, selecionados via amostragem;

- Eles responderam a um questionário de cerca de 40 perguntas via e-mail, enviado por meio do sistema de educação à distância da Senasp;

Dados do estudo por tema

1) Desejo de mudança

- Apenas 15% dos policiais militares brasileiros defendem a manutenção do atual modelo de polícia. 77% querem mudanças urgentes;
- Nas polícias civis brasileiras, 56,4% dos delegados e 51,2% dos agentes desejam mudança. O que resulta em um total de 51,9% dos policiais civis no lado pró-mudanças;
- Somando todos os profissionais da segurança (policiais, bombeiros, guardas municipais, agentes penitenciários), 69,8% desejam mudança no sistema de segurança brasileiro;

2) Unificação de polícias e desmilitarização

- Para 60% dos entrevistados, a vinculação da PM ao Exército é inadequada;
- Somente 20% aprovam o modelo dualista de polícia (civil investigativa e militar ostensiva);
- 42,1% dos PMs não-oficiais (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) são a favor da unificação da PC e PM;
- 18,8% desses PMs, no entanto, manteriam a militarização na polícia unificada. Entre os oficiais, o índice pró-unificação não passa de 15,8%;
- No total, 34,4% dos participantes aprovariam uma unificação entre PC e PM, sendo a nova polícia de caráter civil;
- Outros 15,4% preferem a unificação em caso de a corporação unificada ser militarizada;

3) Condições de trabalho

- 53,9% dos participantes da pesquisa já dizem já ter sido vitimados por humilhação e desrespeito por parte de superiores;
- A grande maioria dessas vítimas pertence à PM, onde o sistema de patentes fomenta estruturas hierárquicas;
- 20,5% dos respondentes da amostra relataram ter sofrido tortura (física ou psicológica) dentro do ambiente de trabalho;
- 41,8% disseram já ter sofrido ameaça por parte de pessoas suspeitas ou condenadas por atividade criminosa;
- 81% dos PMs entrevistados acreditam que "há muito rigor em questões internas e pouco rigor em questões que afetam a segurança pública”;
- 90% dos PMs entrevistados desejam qualificação profissional constante;
- 65,2% dos PMs dizem que “há um número excessivo de níveis hierárquicos em sua instituição”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário