domingo, 25 de outubro de 2009

Nova lei do estupro ainda sustenta polêmica

Mudanças na tipificação de crimes sexuais motiva ampla discussão. Número reduzido de denúncias persiste.

GUTO LOBATO
Da Redação


(Jornal Amazônia - Edição de 25/10/2009)

Do início de agosto até outubro, a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Belém registrou duas ocorrências por estupro. Até aí, nada de mais – estatísticas relacionadas a crimes sexuais contra a mulher não são grande novidade no Pará. O diferencial está na forma com que esses casos correrão no Judiciário. Eles serão os primeiros que a Justiça do Estado interpretará sob o prisma da Lei nº 12.015, publicada em agosto deste ano e que promove amplas reformulações na tipificação penal dos crimes de natureza sexual. Fato pertinente no caso do Pará, que padece diante de incontáveis registros de crimes sexuais, em sua maioria praticados contra mulheres e/ou crianças e adolescentes – neste último quesito, o Estado é o quarto colocado nacional em número de ocorrências, segundo dados do Disque Denúncia.

Foram necessários cinco anos para que a Lei nº 12.015/2009 saísse do boca-a-boca e das gavetas do Senado para conquistar espaço no Código Penal brasileiro. Não sem motivos: a redação da nova lei de crimes sexuais veio – ou deveria ter vindo – para corrigir uma série de falhas históricas do documento original, que veio sofrendo alterações da década de 1940 para cá, sem, no entanto, perder seus traços mais antiquados. Entre eles, por exemplo, a aplicabilidade do crime de estupro (artigo 213) somente a vítimas do sexo feminino.

De agora em diante, o estupro é entendido como um crime aplicável, também, a vítimas do sexo masculino. Antes, os autores de abusos contra homens eram enquadrados pela categoria de atentado violento ao pudor (art. 214), que deixou de existir. Houve, também, modificações sensíveis no que tange às penas – agora, quem engravidar a vítima durante o estupro tem sua pena aumentada em até 50%, por exemplo. Além disso, as penas máximas aumentam – na medida em que a idade e as condições psicossociais das vítimas diminuem – de forma muito mais intensa (veja quadro).

No entendimento de especialistas da área, no entanto, ainda há muitas falhas no documento. Um possível retrocesso é o fato de o crime de atentado violento ao pudor, que caracterizava atos libidinosos diversos da conjunção carnal, ter sido extinto. Isso significa, por exemplo, que um acusado de estuprar e sodomizar determinada vítima não poderá mais receber uma pena para cada crime; será, “apenas”, indiciado por estupro. “Interpretamos a nova lei de crimes sexuais benéfica no sentido de ampliar o leque de enquadramentos e penas de acordo com as circunstâncias do estupro. Mas, de fato, a extinção do atentado violento ao pudor pode levar a penas menores para quem comete mais do que a conjunção carnal”, diz a delegada Alessandra do Socorro Jorge, titular da Deam de Belém.

Outro problema é a equiparação de crimes de gravidade inferior ao estupro. No texto do novo artigo 213, lê-se que este é o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Diante disso, vale um questionamento: será que um beijo forçado deveria resultar nos mesmos anos de cadeia dados a um acusado de violar alguém forçadamente? “A interpretação dos casos é essencial nesse sentido. Cabe à autoridade judicial avaliar a situação de abuso e aplicar a pena que seja mais adequada ao acusado”, afirma o promotor de Justiça Miguel Baía, do Ministério Público do Estado (MPE).

Ações dependem de encaminhamento do MP

Segundo o promotor Miguel Baía, um dos aspectos essenciais relativos à nova lei de crimes sexuais é o da natureza das ações encaminhadas à Justiça. Antes, segundo ele, elas eram de natureza privada – ou seja, eram de propriedade única da própria vítima, sendo ela detentora, também, do poder decisório de levar as denúncias adiante ou não. “A exceção era em caso de estupro com violência real praticada. Nesse caso, a representação junto à Justiça dependia da intervenção do Ministério Público”, argumenta.

Com a nova redação, as ações penais se tornaram condicionadas – ou seja, dependem da representação dos MPs. A regra geral é que as vítimas ainda possuem poder decisório sobre o encaminhamento das denúncias; porém, devem recorrer à promotoria para que elas sigam à esfera judicial. “Em caso de vítimas menores de idade ou vulneráveis, entretanto, o caso vai para a Justiça sob nossa representação, independentemente da vontade da vítima de levá-lo adiante ou não. É a chamada ação pública incondicionada”, completa o promotor.

De forma geral, Miguel Baía considera que a transferência das ações da esfera privada para a pública ajudará as vítimas de violência sexual a levar suas denúncias adiante. “Meu entendimento é que, com o apoio do Ministério Público, as pessoas deverão se sentir mais encorajadas a procurar a polícia, depor, procurar a promotoria e, assim, dar um fim correto aos crimes de natureza sexual”, conclui.

Números policiais não correspondem à realidade

Com ou sem a Lei 12.015/2009, um problema ainda persiste: a relutância das vítimas de crimes sexuais em denunciar seus casos à polícia. As estatísticas da Deam da capital do Estado são um bom exemplo disso: só neste ano de 2009, 5.705 ocorrências foram registradas por mulheres na unidade policial. Destas, no entanto, somente quinze são associadas a crimes sexuais. “É claro que este número não corresponde à realidade. É fato que são uma parcela insignificante dos crimes. Isso é efeito tanto do medo de denunciar quanto do desconhecimento em relação ao que caracteriza o estupro”, aponta a delegada Alessandra Jorge.

“Muitas mulheres são vítimas do que chamamos de cultura de machismo: muitas vezes são forçadas por seus maridos a manter relações, a fazê-lo em posições e circunstâncias que não são de sua vontade, mas não veem isso como estupro”, diz a delegada, frisando já ter ouvido relatos difíceis de acreditar, como o de uma mulher forçada a fazer sexo com o companheiro às vésperas de entrar em trabalho de parto.

“Algumas vítimas vêm até nós falar de agressão ou ameaça e relatam o abuso sexual, mas nem pensam em fazer a denúncia sobre isto. É um sinal de que a submissão e o medo ainda existem e se refletem em nossas estatísticas, assim como se refletem nos dados das delegacias vinculadas à proteção da criança e do adolescente. Se pudéssemos registrar tudo o que ocorre de fato em nossa capital em termos de crimes sexuais, pode ter certeza que as estatísticas seriam muito mais impactantes do que as que atualmente temos”, reitera Alessandra Jorge.

Pará é quarto colocado em crimes sexuais contra jovens

As mudanças na forma de interpelar acusados de crimes sexuais também têm forte reflexo no sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes. Dados do serviço Disque Denúncia (100) apontam que mais de 30% das 87 mil denúncias feitas por telefone entre 2003 e 2009 são de cunho sexual. 57% delas se referem ao abuso e 40% à exploração. Da mesma forma, um estudo elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), vinculada à Presidência da República, aponta que 165 crianças e adolescentes são vítimas de violência sexual por dia no País – e o Pará figura como o quarto colocado no ranking nacional, perdendo apenas para o Maranhão, o Mato Grosso do Sul e o Distrito Federal nesse quesito.

A presença do abuso nas esferas familiares e a relativa ineficiência dos sistemas de proteção social e de garantia de direitos são alguns dos motivos que fazem com que a pedagoga Nazaré Sá de Oliveira, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA) do Pará, veja a aprovação da nova lei com certo ceticismo. “Bom, agora que temos uma lei que agrava a punição a quem pratica crimes sexuais contra jovens e crianças, é preciso investir nos conselhos tutelares do Pará, pôr juízes e promotores nos municípios do interior e oferecer às vítimas um programa de proteção que não se restrinja à capital. Caso contrário, a lei nunca vai sair do papel”, diz.

Segundo Nazaré Sá, a dificuldade em se obter provas materiais dos crimes de abuso costuma impedir que muitos casos cheguem à esfera judicial e resultem em penas adequadas. “Obter a materialidade desse tipo de crime é um desafio. No interior, faltam médicos para fazer exames que confirmem o abuso. A polícia, por sua vez, procede de forma errada e não ensina a vítima a se defender, fornecendo caminhos para levar o caso ao Ministério Público e à Justiça. O resultado são vários crimes que prescrevem ou que têm seus acusados inocentados por falta de provas”, diz. “Tudo isso poderá ser mudado com maiores investimentos nos órgãos que apoiam e sustentam as denúncias de crimes sexuais”, alerta a presidente do CEDCA.

Dona de casa relata uma vida de abusos


Vítima em um dos casos cujo inquérito começou a correr na Deam desde a aprovação da Lei 12.015/2009, a dona de casa Marluce (nome fictício) diz ver na nova lei uma forma de se emancipar de uma relação abusiva e degradante. Tudo começou quando ela tinha apenas sete anos. Criada em uma família desestruturada, Marluce foi morar junto à irmã e ao marido dela. Não tardou para que este começasse a abusar sexualmente da dona de casa - e, pior ainda, com o consentimento da irmã.

"Ele mantia relações comigo e me chantageava, dizendo que, se eu falasse algo para minha irmã, ela ia me jogar na rua. Até que, aos 17 anos, engravidei dele e ela tomou ciência do abuso. Mas fez vista grossa", relata. A situação se prolongou por mais nove anos e resultou em duas crianças geradas por conta dos abusos. Dentro da casa, a regra era que Marluce não podia ter amigos, estudar ou namorar. "Não tive como estudar direito. Ele impedia que eu saísse de casa", diz.

Há três anos, ela decidiu ir embora da residência da irmça junto às filhas, depois que o abusador as agrediu na véspera de Natal. O resto da família tomou ciência e, diante do risco de ser preso, o abusador começou a ameaçar Marluce de morte. "Aí não tinha mais jeito. Tomei coragem e fui à delegacia para relatar a situação". A princípio, a ideia da dona de casa era denunciá-lo por agressão, mas os policiais civis a incentivaram a tornar público o abuso sexual prolongado.

O caso já está nas mãos da Defensoria Pública e, em breve, deve ir parar no Ministério Público do Estado, após a conclusão do inquérito da Deam. Hoje com 29 anos e vivendo junto a um companheiro no bairro da Terra Firme, Marluce luta para levar uma vida normal, trabalhando como babá nas horas vagas. O problema é que, além dos traumas deixados pelo abuso sexual, ela ainda luta para que suas filhas voltem para casa. Revoltado com a denúncia do caso à Deam, o abusador as tirou da dona de casa há cerca de três meses. A situação já foi denunciada à polícia.

"Hoje tenho consciência do que ele fez comigo, de como ele destruiu minha vida e de como fui vítima de um crime hediondo. Não tive como estudar, como dar uma educação decente para minhas filhas. Às vezes olho para as jovens estudando nas universidades e penso: eu podia ter chegado lá. O problema é que eu não tive uma família que me ajudasse a sair daquele inferno", conta. "Para completar, ele tirou as minhas filhas de mim. Tudo o que quero é tê-las de volta e ver este homem pagar pelo que fez", diz, emocionada.

O QUE MUDA COM A NOVA LEI DE CRIMES SEXUAIS

Antes:

- Duas tipificações criminais eram utilizadas para enquadrar o acusado de crimes sexuais: estupro (art. 213 do Código Penal) e atentado violento ao pudor (art. 214);
- Somente mulheres poderiam ser vítimas de estupro, segundo a lei, já que este era caracterizado exclusivamente pelo coito vaginal. Abusos praticados contra homens eram enquadrados como atentado violento ao pudor;

- As penas previstas oscilavam entre quatro e dez anos, dependendo das condições do crime e da situação etária e psicossocial da vítima;

- A ação penal imposta contra o acusado era de natureza privada. Ou seja, só era encaminhada à Justiça se a vítima quisesse. A única exceção, em que o caso tinha a representação do Ministério Público, era para os casos em que houvesse violência física real ou em que a vítima fosse menor de idade ou vulnerável (portadora de necessidades especiais, etc.);

- O crime de estupro só era considerado hediondo (com base na Lei 8.072/90) se resultasse em morte ou lesão grave;

Depois:

- O crime de atentado violento ao pudor foi extinto. Hoje, somente o crime de estupro pode ser aplicado à hora de enquadrar os acusados de crimes sexuais;

- A redação do novo artigo 213 não faz distinção de sexo, entendendo o estupro como ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal“ ou a praticar “outro ato libidinoso”;

- As penas previstas são diferenciadas: há a de reclusão de seis a dez anos (em caso de maior idade da vítima); de oito a 12 anos (se a vítima tiver idade entre 14 e 18 anos de idade); de oito a 15 anos (em caso de pessoas consideradas "vulneráveis" ou menores de 14 anos) de 12 a 30 anos (se o crime resultar em morte). Elas podem, ainda, ser aumentadas em até 50% caso resultem em gravidez da vítima do sexo feminino;

- A ação contra os acusados se tornou pública e condicionada. Ou seja, a vítima deve recorrer à representação do Ministério Público para encaminhar casos à Justiça - mas ainda é quem decide se a denúncia deve ou não ser feita. Em caso de violência contra menores de 14 anos e/ou portadores de necessidades especiais, no entanto, a ação pública se torna incondicionada, independendo da vontade da vítima para ser ir parar na Justiça;

- O crime de estupro se tornou hediondo, mesmo quando entendido como estupro "simples" (sem resultar em lesão grave ou morte da vítima);


ESTATÍSTICAS DA DEAM/PC

Período: Janeiro a setembro de 2009


Estupro - 12
Atentado violento ao pudor - 3
Lesão corporal - 1.541
Ameaça - 1.569
Injúria - 170
Vias de fato - 1.124
Outros - 1.286
Total: 5.705 casos

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