terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Criminalidade não poupa nem postos de saúde

Vândalos e assaltantes atacam unidades destinadas ao atendimento básico à população. Só em Ananindeua, foram quatro ocorrências em três meses.

GUTO LOBATO
Da Redação

Quando a legislação brasileira sobre saúde pública contemplou a criação das chamadas Unidades Municipais de Saúde (UMS), a ideia era de que o atendimento ambulatorial à população se aproximasse de seus locais de moradia, descentralizando, de quebra, os serviços antes concentrados nos hospitais de média e alta complexidade. O problema é que, cada vez mais, esses locais se tornam reféns de seu próprio entorno.

Concentradas em "zonas vermelhas" - usando o jargão policial -, as unidades da Região Metropolitana de Belém (RMB) sofrem com a ação constante de assaltantes e vândalos. Só nos últimos três meses, quatro postos do município de Ananindeua foram assaltados ou depredados. nos bairros do Distrito Industrial, Paar, Cidade Nova e 40 Horas. No último caso, a unidade chegou a ficar fechada durante uma semana após uma "limpeza" feita por bandidos no local.

A verdade é que a chegada da violência urbana às unidades de saúde denota, acima de tudo, a ineficácia dos mecanismos de segurança pública em mantê-las sob proteção 24 horas. O problema dos assaltos também tem aparecido em cidades como Fortaleza (CE), Recife (PE), Salvador (BA) e até Natal (RN), conhecida por seus índices "aceitáveis" de violência urbana. Menores e desprotegidas em relação a hospitais e prontos-socorros, elas sofrem com a falta de efetivo policial para defendê-las e têm, regra geral, difícil acesso - ou seja, tão perigoso quanto trabalhar em alguns postos é chegar até eles.

Os efeitos disso já são bem conhecidos: por um lado, há os prejuízos causados aos cofres públicos, com a subtração de equipamentos de alto custo e a necessidade de contratação de segurança privada; por outro, há a redução no número de profissionais de saúde interessados em trabalhar nessas unidades. Muito embora as secretarias municipais de saúde de Belém (Sesma) e Ananindeua (Sesau) não declarem oficialmente, sabe-se que não é nada fácil encontrar médicos para atender a população da periferia, em especial nos turnos da noite.

O próprio Sindicato dos Médicos do Pará (Sindmepa) reconhece a gravidade da situação e diz que, hoje, as condições de segurança compõem boa parte da pauta de reivindicações da classe junto ao poder público. "Temos vários registros de médicos que foram assaltados e ameaçados quando tentaram trabalhar nas unidades básicas. A sobra de vagas nesse setor é evidente, não importa o quanto tentem mascarar. E isso não só nos postos como nos Postos de Saúde da Família e no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu)", aponta o diretor do sindicato João Gouveia.

Depredações e assaltos em série no município de Ananindeua

Os quatro casos - duas depredações e dois assaltos - transcorridos em Ananindeua dão uma ideia do que a população carente tem tido de suportar à hora de buscar atendimento básico. Em setembro, 20 homens invadiram e depredaram a unidade do Distrito Industrial por conta do baleamento de um criminoso da área. A Prefeitura Municipal de Ananindeua (PMA) chegou a reformar o local, mas os próprios funcionários não apareceram para trabalhar nos dias seguintes, pois foram ameaçados pelos vândalos. A alegação destes era de que o assaltante, que já chegou morto à unidade, só tinha vindo a óbito por culpa da equipe médica que estava de plantão.

No mês passado, o posto de saúde do Paar também teve janelas e teto apedrejados por três jovens que procuravam atendimento médico durante a madrugada. Já nas unidades de saúde da Cidade Nova VI e do 40 Horas, a ação criminosa trouxe riscos bem maiores à população e aos servidores. No final do mês passado, três homens invadiram o posto da Cidade Nova e roubaram o revólver de um vigilante contratado pela prefeitura para fazer a segurança do local. Eles fingiram ser pacientes em busca de atendimento médico e fugiram do local de motocicleta, diante do olhar atônito de usuários e funcionários.

No primeiro dia deste mês, o posto situado no Jardim Nova Vida - a antiga "invasão do Buraco Fundo" - foi alvo da ação de quatro bandidos armados que invadiram a unidade, por volta de 11h, e assaltaram vários pacientes e funcionários. Uma das vítimas, que acompanhava seu filho pequeno, chegou a ser ameaçada com um revólver apontado no rosto, segundo testemunhas.

Sem que houvesse explicações formais, a unidade foi fechada na tarde do mesmo dia, o que gerou protestos por parte da população que buscou atendimento no dia seguinte. Os serviços só foram restabelecidos na última quarta-feira, 9. "Esse posto é vítima constante de assaltos. Já teve outras duas vezes que invadiram pelo teto e furtaram os equipamentos, mas pelo menos não tinha ninguém dentro. Dessa fez foi na 'cara dura', ameaçaram pacientes", diz Lázaro Pantoja, presidente da Associação Comunitária Paulo Fonteles, que representa a comunidade Nova Vida. "Levam tudo daqui e nós ficamos sem atendimento médico durante uma semana. Isso é inaceitável", completa.

Unidades da periferia são principais afetadas

Durante toda a semana, a reportagem percorreu unidades de saúde dos municípios de Ananindeua e Belém e constatou que o medo impera, sobretudo em áreas de vulnerabilidade social nos bairros do Benguí, Cabanagem, Águas Lindas, Paar, Distrito Industrial, 40 Horas, Sacramenta e Barreiro. Uma rápida visita aos locais que foram vítimas recentes da criminalidade aponta que tanto moradores quanto servidores permanecem apreensivos - não apenas por conta dos assaltos dentro das unidades, como também pelo entorno delas, muitas vezes tomado pelo crime organizado.

Um mês depois da depredação organizada por supostos pacientes, a unidade do Paar permanece inacessível à imprensa. Uma recepcionista de plantão se limitou a informar que "tudo está na mesma", impedindo a entrada da reportagem com o fechamento da porta central. Os moradores, no entanto, não se importam em falar. Uma autônoma que levou seu filho para atendimento à manhã de terça-feira disse que a insegurança no posto é apenas um reflexo do que se vive no bairro. "Aqui é assim: tudo gradeado, sete da noite todo mundo precisa estar em casa. Os bandidos não respeitam nem o lugar em que são atendidos quando arrumam briga", reclamou.

Na unidade do Jardim Nova Vida, no 40 Horas, o cenário era desolador à manhã do mesmo dia. Moradores pertencentes à Associação Comunitária Paulo Fonteles capinavam e limpavam o entorno do prédio em que funciona a unidade, situado ao início de uma área de baixada em que não há água potável, pavimentação ou saneamento adequados. A ideia era deixar o posto "apresentável" para sua reinauguração, depois que a prefeitura comprou os equipamentos roubados e prometeu pôr seguranças. "Infelizmente é assim. Nós já chegamos ao ponto de ter até que limpar as salas da unidade. Os funcionários fazem o que podem, mas nossa situação é de completo abandono", diz o líder comunitário Lázaro Pantoja.

Conhecida por seu histórico de assaltos, a 2ª unidade de atendimento do Benguí, que presta atendimento ambulatorial e também é polo de atenção ao idoso, já dispõe de segurança privada. Situado na passagem Maciel, o posto é cercado de vias de difícil acesso e sofre de uma carência crônica de médicos, segundo o representante comunitário Inaldo Coelho. "Não é culpa dos médicos. Eles ficam muito assustados e abandonam os postos aos poucos, pois são assaltados antes de chegar aqui, quando chegam, quando estão trabalhando e quando vão voltar para casa", alega.

Diretor da unidade, o médico José Ohana confirma as dificuldades pelas quais a unidade passa, mas garante que há esforços para resguardar a integridade dos usuários e servidores. "O problema é que não podemos pôr a Guarda Municipal para fazer policiamento. Se ela ficar armada, haverá tiroteios com bandidos dentro da unidade. E isso não fazemos, até pela segurança de todos. Dependemos mesmo é da ação da Polícia Militar (PM) da área, para controlar o entorno. Temos dialogado constantemente com os comandos", alega.

Situação semelhante é percebida na unidade do conjunto Paraíso dos Pássaros, situada na rua dos Tucanos e cercada de acessos rápidos a "zonas vermelhas" de Belém, como a passagem Mirandinha, a rodovia Artur Bernardes e o canal São Joaquim, no bairro do Barreiro. Apesar da localização preocupante, o posto nunca teria sido assaltado em oito anos de atividade, segundo informado pela vice-diretora Keila Botelho.

"O grande problema que vemos por aqui é nos postos de Saúde da Família mesmo. Aqui na unidade, nunca teve assalto. Há situações, mas somente no entorno", diz, reforçando a ideia de que parcerias com 1ª Zona de Policiamento (Zpol) da PM têm ajudado a manter tal índice. "Sabemos que é raro uma unidade nunca ter sido assaltada e nos esforçamos para manter esta 'posição privilegiada'", conclui a vice-diretora.

"É preciso que as prefeituras façam sua parte"

O Sindmepa sustenta uma posição oficial em relação às ocorrências em unidade de saúde: hoje, já não se pode falar em melhores condições de trabalho dos médicos sem abordar a questão da violência. "Já faz uns três anos que a insegurança entrou na nossa pauta. Antes, buscávamos ampliar o debate sobre as condições estruturais e os salários da classe, mas tivemos que incluir a questão da segurança. Todos os dias recebemos denúncias de peritos, socorristas, médicos ambulatoriais e cirurgiões que são ameaçados e assaltados, em especial nas unidades básicas", alega o diretor João Gouveia.

Entre os bairros considerados críticos pelo sindicato estão o Benguí, a Marambaia, o Tapanã e a Cabanagem, além do município de Ananindeua como um todo. Nas unidades dessas áreas, segundo Gouveia, há um problema central: a falta de serviços de segurança garantidos pelas próprias gestões municipais. "Quando a unidade é municipal, é preciso que as prefeituras façam sua parte, não joguem tudo nas costas da PM. É preciso mais segurança, seja privada ou por meio das guardas municipais", argumenta.

O aumento da violência em espaços de saúde pública fez, inclusive, com que o Sindmepa articulasse um fórum de discussão. A medida, no entanto, ainda não saiu do papel. "Infelizmente, ainda não tivemos apoio da sociedade civil. É preciso que se tenha consciência de que, além de um problema de saúde pública, que faz com que um terço das verbas da saúde seja gasto com atendimentos ligados à violência, também temos de interpretar a insegurança como um risco às condições de trabalho da classe médica e, consequentemente, como mais uma exposição de risco para a população", complementa.

Sesma reforça esforços para coibir insegurança

A questão da violência em Belém tem sido combatida não só nas unidades municipais de saúde, como também nos postos de saúde da família e farmácias populares, segundo a Sesma. Em nota, a assessoria do órgão informou que estes postos dispõem de serviços de segurança privada armada, contratados por meio de licitação e contrato de número 1871/2008. O motivo para a "privatização" de tal serviço, segundo a Sesma, decorreu do "contingente reduzido que a Guarda Municipal de Belém (GMB) dispunha naquele momento, já que a guarda, além de zelar pelos patrimônios públicos das UMS, tem o dever de preservar outros espaços públicos do município". A responsabilidade pelos assaltos no entorno das unidades, no entanto, não seria de responsabilidade da Sesma, "mas sim do poder público do nível estadual".

Entre as unidades que têm histórico mais amplo de ocorrências, segundo a secretaria municipal, estão unidades dos bairros do Tapanã, Cabanagem, Águas Lindas e Bengui. O posicionamento do órgão é de que, de fato, há dificuldade "em manter o quadro de servidores nas unidades, pois os funcionários muitas vezes pedem exoneração por falta de segurança e ameaças sofridas pela própria comunidade". Porém, o município já teria feito "o pedido de reforço policial para as unidades localizadas em áreas consideradas críticas".

Algumas ocorrências recentes

14/9

Local: UMS do Distrito Industrial (Primeira Rua Ruaral, s/n)
Ocorrência: 20 homens invadiram a unidade do Distrito Industrial, quebraram equipamentos, janelas e móveis. O motivo: a morte de um criminoso que fora baleado e já chegou morto à unidade. Apesar disso, seus comparsas resolveram culpar os médicos e enfermeiros pelo incidente e passaram a ameaçá-los.
No que resultou: Ninguém foi preso. A unidade foi entregue, revitalizada, em 11 de novembro.

23/11

Local: UMS do Paar (Avenida Rio Solimões, s/n)
Ocorrência: Três pessoas danificaram com pedradas o telhado e a enfermaria da unidade de saúde do Paar. Dois adolescentes e ainda Charles Pereira Corrêa, de 20 anos, procuraram atendimento médico no local para este último por volta das 5h. Ele se queixava de dores em um dos braços. Ao saber que não haveria medicamento para atendê-lo, os jovens começaram a jogar pedras em algumas janelas e telhas da construção, que ficaram quebradas. Nenhum dos três tinha passagem pela polícia.
No que resultou: Charles foi preso em flagrante e autuado pelo crime de dano ao patrimônio público na Seccional Urbana do Paar. Os menores de idade foram encaminhados para a Divisão de Atendimento ao Adolescente (Data).

24/11

Local: UMS da Cidade Nova VI (WE 72, s/n)
Ocorrência: Um vigia da unidade de saúde da Cidade Nova 6 teve o revólver roubado. Três homens se fingiram de pacientes e invadiram o local por volta de 21h
Os acusados, que aparentavam ter entre 20 e 22 anos, eram magros e tinham estatura mediana, chegaram armados e mandaram que o vigia entregasse seu revólver, marca Taurus, com seis munições. A vítima disse não lembrar da fisionomia dos bandidos.
No que resultou: O inquérito que apura o crime continua em aberto. O destino do revólver é desconhecido.

1/12

Local: UMS do Jardim Nova Vida (Rua Osvaldo Cruz, s/n)
Ocorrência: A unidade de saúde do Jardim Nova Vida, no bairro do 40 Horas, foi alvo de assalto enquanto recebia dezenas de usuários, às 11h. Quatro homens armados entraram no posto e levaram vários objetos, entre carteiras, bolsas, celulares, dinheiro e até um veículo, que foi abandonado alguns metros após o posto. Antes disso, bandidos já haviam invadido a unidade outras duas vezes, mas sem atacar pacientes e servidores.
No que resultou: A unidade foi fechada durante uma semana e reaberta nesta quarta-feira (9). Segundo os moradores, alguns funcionários pararam de trabalhar no local.

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