terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Falta de regulamentação e rixas atrapalham transporte alternativo em Icoaraci

Distrito concentra 80% da frota de alternativos da capital. Por conta disso, cooperativas vivem em desavença.

GUTO LOBATO
Da Redação


O que um acidente de trânsito que resultou na morte de dois pedestres, uma comunicação falsa de sequestro e um homicídio podem ter em comum? Nesses três casos, que foram registrados recentemente na seccional urbana do distrito de Icoaraci, no município de Belém, há um fator consensual - a relação com o sistema de transporte alternativo que se instalou no distrito. Na primeira ocorrência, o acidente foi causado pela imprudência de um motorista de van; na segunda, um presidente de cooperativa armou o próprio sequestro por razões políticas; e, na terceira, um vice-presidente de cooperativa foi executado a tiros dentro de uma van, possivelmente por rixas ou dívidas pessoais.

Situações como essas deixam claro que a falta de regulamentação e a disputa por linhas e setores entre cooperativas têm deixado o transporte alternativo cada dia mais perigoso e instável. No caso de Icoaraci, a própria Polícia Civil reconhece os efeitos que a ausência de medidas do Estado - por meio de mais linhas de ônibus e/ou políticas de regularização dos perueiros - geram no distrito: insegurança no trânsito, na rotina dos usuários e no próprio trabalho dos motoristas, que, além de exposto à ação de criminosos, acaba sendo cercado de rixas e rivalidades.

O problema de transporte público em Icoaraci é antigo. Com cerca de 300 mil habitantes - muitos deles vivendo ao redor da zona urbana, em invasões e loteamentos irregulares -, o distrito carece de linhas que ofereçam um bom acesso ao centro da cidade. Quem reside nas imediações só possui reclamações quanto às poucas empresas que atuam neste trajeto.

"Passa um ônibus a cada 40 minutos aqui. E as rotas são pouco abrangentes. Ou pegamos os alternativos ou chegamos atrasados no trabalho", diz a empregada doméstica Mariana Cardoso, residente no bairro da Agulha. Com base nesse depoimento, não é difícil entender, portanto, o porquê de o transporte alternativo ter se desenvolvido de forma tão intensa na área. Em termos de participação na frota alternativa de Belém, Icoaraci acumula, sozinho, 80% dos motoristas e vans cadastrados junto à Federação das Cooperativas de Transporte do Estado do Pará.

São dezenas de linhas que, regra geral, fazem trajetos diretos do centro de Belém até o distrito, saindo de bairros como São Brás e Comércio, com preços bem mais em conta - R$ 1 a R$ 1,50, em média - para quem, por vezes, teria de pegar dois ônibus para chegar em casa (veja quadro). "Se estamos atuando nessa área, é pelo simples fato de que existe uma lacuna imensa deixada pelo poder público. Hoje, Icoaraci concentra uma população imensa e pouquíssimas opções de transporte para o centro", diz Charles Carvalho, presidente da Federação das Cooperativas.

O problema é quando a desorganização e ausência de normas tornam este serviço paralelo perigoso à população. Em 26 de outubro, um grave acidente de trânsito foi causado por uma van que fazia a linha Maguari/São Brás na rodovia Augusto Montenegro, em Belém. No intuito de buscar um passageiro que acenara em frente ao conjunto José Homobono, na rodovia Augusto Montenegro, no sentido de retorno do distrito de Icoaraci, o motorista cortou bruscamente um ônibus da linha Tenoné/Ver-o-Pêso, perdeu o controle e avançou sobre a calçada, tombando sobre pelo menos dez pessoas.

Um casal de técnicos em enfermagem morreu em decorrência da colisão - Shirley dos Anjos, 31 e Edinaldo Damasceno, 42. Ambos tinham um filho de 28 dias de idade, mas a mãe conseguiu salvá-lo atirando-o para longe frações de segundo antes de ser atingida pela van. À época, muito se discutiu sobre quem teria a real culpa, mas um laudo encaminhado semanas depois à polícia pelo Centro de Perícias Científicas (CPC) Renato Chaves confirmou que o acidente foi causado pelo motorista da van.

"Esta tragédia mostra que o sistema de transporte alternativo é uma grande balbúrdia. Sem regulamentação, cada qual tem sua lei e age como quer. Ganha o melhor ponto quem for mais forte. O interesse por dinheiro é tão grande e a disputa tão intensa que, em detrimento da segurança da população, o ritmo de trabalho destes profissionais é cada vez mais desorganizado", resume o delegado Bragmar Dias, titular da Seccional Urbana de Icoaraci. "A verdade é que já passou da hora de o transporte alternativo ser regulamentado. Se houvesse um norteamento, uma norma a ser seguida, o serviço seria bem mais seguro. E as disputas por poder, que são uma realidade, cessariam".

Homicídio sob investigação pode estar associado a disputa

Um caso recente de homicídio, que está sendo investigado pela polícia de Icoaraci, pode ter envolvimento com possíveis disputas entre membros de cooperativas. O motorista de van - e vice-presidente de uma cooperativa de Outeiro - Kleiton da Câmara Carneiro foi morto ao final da noite de sexta-feira passada em uma invasão conhecida como "Bradesco". Tudo indica que foi um acerto de contas: o crime ocorreu quando a vítima parou a van para que um suposto passageiro descesse. Este, junto a outro comparsa, disparou contra a vítima ao sair do veículo. Um cobrador também foi atacado pela dupla, mas não foi acertado por nenhum dos tiros.

Há duas possibilidades com as quais a Polícia Civil trabalha - uma é a de que, conforme coletado em vários depoimentos ao delegado responsável pelo caso, a execução tenha sido motivada por conflitos entre cooperativas. A outra hipótese é de que a vítima teria uma dívida pessoal relacionada à van que conduzia. "De qualquer forma, isso indica que há algo de muito errado na forma com que as cooperativas se instalaram por aqui. A maioria dos veículos é financiada e vem de outros Estados, o que gera dívidas e desavenças constantes. Por outro lado, há a possibilidade de uma disputa estar associada a este crime, cometido diante de pessoas inocentes", alerta o delegado Bragmar Dias.

Segundo o diretor da Seccional de Icoaraci, já há registros de outras ocorrências de menor gravidade, como agressões e ameaças, associadas a perueiros. A melhor saída para preveni-las, segundo ele, seria a regularização. "Os ganhos seriam para todos: eles teriam um trabalho mais seguro, teriam seu trajeto definido, impedindo disputas por 'territórios'. E a população teria um transporte bem mais seguro, tanto no quesito de trânsito quanto no de exposição à violência", analisa.

Federação e perueiros negam disputa entre cooperativas

"O posicionamento da Federação das Cooperativas de Transporte do Estado do Pará é claro: não, não há disputas por áreas e trechos em Icoaraci. Há discrepâncias, mas, no fundo, todo mundo se entende". Assim o presidente da federação Charles Carvalho rebate as suspeitas sobre ocorrências policiais associadas à disputa entre cooperativas. Segundo ele, casos como o da morte do motorista Kleiton da Câmara Carneiro são motivados por problemas pessoais, e não por rixas.

"Suspeitas como essas são infundadas. Aquilo foi um problema particular dele. Claro que há eventuais desavenças, mas ninguém resolve isso na base do tiro. Ao contrário do presidente da cooperativa deste motorista que foi morto, diga-se de passagem", diz. Em relação à insegurança no trânsito, que envolve a falta de regulamentação de linhas e padrões para as vans e micro-ônibus, o presidente da Federação garante que o desejo das cooperativas é, também, encontrar uma solução para o impasse.

"A gente sabe que nosso serviço precisava ser melhor, mais organizado. Mas não depende somente de nós. Estamos à espera do poder público para que a classe seja regularizada. Daí em diante, teremos mais subsídios para organizar o sistema de transportes alternativos, incluindo, aí, a situação do distrito de Icoaraci, onde a atuação de nossa frota e nossos motoristas é muito forte", garante.

Procurar opiniões junto a motoristas e cobradores do transporte alternativo de Icoaraci, por sinal, não é nada fácil. A reportagem entrou em contato com cinco deles e recebeu, sempre, respostas negativas, mesmo garantindo preservar suas identidades. Somente um motorista, que atua pela Cooperativa de Transporte Alternativo (Cootransalt) e trabalha há cinco anos no trecho Icoaraci-São Brás, se dispôs a falar sobre a situação.

A opinião dele é de que, atualmente, não se pode mais falar em disputas na área do distrito. "Quando comecei, aí sim, era cada um por si, uma loucura. Cada um fazia sua lei, e não era difícil ter briga por causa de linhas que iam pelo mesmo caminho. Mas isso já mudou. A classe está mais unida", disse. "Estamos, inclusive, estudando a integração de umas dez cooperativas aqui em uma só empresa. Cada um terá seu cargo e definirá sua rota", conclui o motorista.

Presidente de associação forjou próprio sequestro

Outra situação que virou caso de polícia - e que bem mostra os meandros políticos do universo das cooperativas e associações - foi a do presidente da União das Vans de Icoaraci (Univan), Carlos Alberto Souza Rodrigues, que teria armado o próprio sequestro no final de semana passado. Ele e a namorada estão sendo investigados pela polícia por falsa comunicação de crime. Carlos teria desaparecido na segunda-feira, segundo sua companheira, que comunicou o crime alegando ter recebido mensagens pelo celular que confirmavam o sequestro.

Equipes de Polícia Civil, no entanto, iniciaram buscas pelo Estado e encontraram o presidente da Univan hospedado sozinho em uma pousada na praia de Ajuruteua, no município de Bragança, sem quaisquer sinais de violência. Ele e sua companheira receberam Termos Circunstanciais de Ocorrência (TCO). Responsável pela investigação, a titular da Delegacia de Repressão a Crimes Tecnológicos (DRCT), delegada Beatriz Machado, coletou junto ao acusado um depoimento que confirma a função política da falsa comunicação de crime.

A situação de Carlos é complicada. Presidente da Univan, ele estava preocupado com sua permanência no cargo por não atender a uma das exigências do estatuto da cooperativa: possuir um veículo próprio. Toda sua renda era obtida a partir do cargo. "O medo dele era perder este cargo e ficar sem renda fixa. Ele nos confirmou ter comunicado o sequestro de forma a se manter em evidência para as próximas eleições da presidência", aponta a delegada Beatriz.

O transporte alternativo em Icoaraci

- Atualmente, cerca de 20 cooperativas e associações operam linhas que circulam entre o centro de Belém e Icoaraci, Outeiro e imediações, segundo a Federação das Cooperativas de Transporte do Estado do Pará;

- 1,7 dos 2,1 mil associados da Federação na capital do Estado atuam em linhas que passam pelo distrito. Isso significa que mais de 80% do transporte alternativo de Belém está associado a Icoaraci;

- Estes grupos, juntos, têm uma frota de 400 vans circulando pelo distrito diariamente, sendo que 40% delas operam 24 horas. As demais circulam entre as 6h e a meia-noite. Nas linhas que conduzem ao distrito de Outeiro, são mais 140 veículos operados;

- Os preços variam para cada linha ou cooperativa, mas a média é de R$ 1,50 (inteira) a R$ 1 ("meia-entrada") para o trajeto São Brás-Icoaraci;

- A maioria das linhas opera em trajetos que o transporte público não cobre. Para chegar ao distrito, as vans trafegam pelas rodovias Artur Bernardes e Augusto Montenegro, como no caso dos ônibus, mas também entram em conjuntos, loteamentos e áreas de invasão que eventualmente estão pelo caminho;

- Entre as áreas em que o transporte alternativo atua estão as 27 invasões que se espalham do bairro do Tapanã até as ocupações Paracuri I e II, em Icoaraci. Há, também, rotas que compreendem vias como a travessa Soledade, no Paracuri I, situadas na área central de Icoaraci, porém atendidas por uma frota reduzida de ônibus;

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