terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Tráfico e violência assolam bairro da Cabanagem

Média de seis homicídios mensais assusta moradores. Polícia enfatiza combate a comércio de drogas no bairro.

GUTO LOBATO
Da Redação


Medo da criminalidade, carência de serviços fundamentais e uma sensação de completo abandono por parte do poder público. O cotidiano dos moradores do bairro da Cabanagem, em Belém, não difere do vivido por quem reside em outras áreas periféricas da capital. O grande diferencial está na crescente de violência que se tem enfrentado no local nos últimos meses. Foco da ação de traficantes de grande porte, o bairro registra uma média de seis homicídios por mês, segundo dados da Polícia Civil – e boa parte desses crimes possui características de acerto de contas. Colaboram nessa equação desoladora de insegurança ruas mal pavimentadas, áreas de invasão que não param de crescer e um reduzido efetivo policial para cobri-las.

Com uma população de baixa renda estimada em pouco mais de 20 mil habitantes, a Cabanagem é mais um fruto da expansão desordenada que se configurou no trajeto entre Belém e o distrito de Icoaraci nos últimos 20 anos. Delimitado pelas rodovias Augusto Montenegro (a oeste) e Mário Covas (a leste), o bairro faz fronteira com Parque Verde, Mangueirão e Coqueiro, outros que possuem histórico de grande vulnerabilidade socioeconômica.

Um rápido passeio pelas travessas que cortam a principal via de acesso do bairro, a avenida Independência – inaugurada em 2004 e que promete ser a nova saída de Belém rumo à região metropolitana, com o projeto Ação Metrópole –, mostra a desconfiança com que moradores recebem quem não é da área. Por volta de meio-dia, as ruas estão vazias e sem muito movimento. Os estabelecimentos comerciais e casas, mesmo quando ficam à beira da avenida, são todos gradeados. Uma exceção é a rua Damasco, paralela à Independência, onde funciona a feira do bairro. Mas comerciantes dificilmente se expõem falando do assunto à imprensa.

Com certa relutância, uma comerciante de 73 anos topou falar com a reportagem dentro do armarinho que administra. Pedindo para não ser identificada, a moradora disse viver com o marido há 23 anos na Cabanagem e ter se adaptado à criminalidade. "No outro lugar em que a gente morava, dava para pôr as cadeiras na frente de casa e ficar lá, com os vizinhos. Aqui, temos que nos recolher depois das sete da noite", relata. "Vez ou outra aparece alguém morto, ouvimos trocas de tiros, sirenes da polícia. Botar a cara para fora de casa é arriscar a vida".

Apesar disso tudo, ainda se poderia dizer que a comerciante não está na pior das situações - seu estabelecimento fica a poucos quarteirões da delegacia de Polícia Civil do bairro. O problema é que, após sucessivas fugas e problemas infra-estruturais, a unidade acabou por funcionar em "horário comercial". Segundo ela, isso impede que a segurança no local melhore efetivamente. "Esse é o grande problema. Poderíamos até dizer que a polícia nos protege estando aqui perto, mas a delegacia fecha de noite. Não tem lei aqui depois que anoitece", lamenta.

17 mandados de prisão por cumprir na Cabanagem

Há quatro meses à frente da delegacia da Cabanagem, a delegada Isabel Cristina já reconhece dados preocupantes no bairro. De acordo com a supervisora, desde o mês de setembro uma média de seis homicídios mensais tem sido registrada. Boa parte dos crimes possui envolvimento com o tráfico de drogas, um problema histórico na área. Mas há, também, latrocínios e crimes por encomenda, associados à disputa entre gangues do bairro. "A verdade é que nós sabemos que o problema aqui é o abandono do poder público. Há somente duas vias pavimentadas, a Independência e a Damasco. As ocupações são irregulares, o policiamento é dificultado", afirma. "Dessa forma, o tráfico de entorpecentes e a ação de assaltantes só faz se alastrar".

Apesar da fama, a Cabanagem não figura entre os bairros líderes de ocorrências da Grande Belém. O último relatório do Sistema Integrado de Segurança Pública (Sisp) aponta a predominância de crimes de roubo em bairros como Guamá, Jurunas, Coqueiro e Campina, por exemplo. "Isso se deve, em especial, ao medo das pessoas daqui na hora de registrar ocorrência. Senão o bairro estaria no 'ranking'. Temos um grande índice de assaltos à mão armada, em especial nas áreas de comércio. Mas a 'lei do silêncio' ainda impera por aqui", diz a delegada.

Com um efetivo extremamente reduzido - a unidade estava sem chefe de operações e com apenas um investigador à semana passada - e muito trabalho pela frente, a delegada Isabel, da delegacia da Cabanagem, afirma que o problema não é identificar os principais infratores da área, e sim pô-los atrás das grades. Atualmente, há 17 mandados de prisão preventiva de acusados por cumprir na área. "Infelizmente, dependemos de efetivo para ir atrás de todos esses bandidos. Faltam policiais para fazermos este trabalho", diz. Outros agentes lotados na delegacia, que preferem não ser identificados, também mencionam ameaças por telefone feitas à unidade como fatores que atrapalham a ação policial no bairro.

Atualmente, a delegacia da Cabanagem está submetida à Seccional Urbana da Marambaia. Isso significa que à noite e nos finais de semana as ocorrências do bairro são registradas por lá. O policiamento ostensivo também depende da 5ª Zona de Policiamento (Zpol) da Polícia Militar (PM), sediada na seccional. A área de cobertura dela, no entanto, é imensa - seus homens atuam nos bairros do Bengui, Atalaia, Jaderlândia e Guanabara, além da própria Cabanagem. São quase 200 mil moradores que dependem diariamente deste destacamento policial. "Nos finais de semana é uma chuva de ocorrências. A Cabanagem, em especial, sofre com o tráfico e com o difícil acesso da PM e da Civil a algumas áreas de invasão", reconhece o delegado Walter Rezende, titular da seccional da Marambaia.

Bairro é dominado por "médios traficantes"

O histórico de violência na Cabanagem está intimamente associado à rede internacional de tráfico de entorpecentes. Hoje, a Polícia Civil já reconhece que a receptação de drogas "importadas", em especial a cocaína e a maconha, é comum no bairro. As bocas de fumo espalhadas em ocupações como João Amazonas, Ferro Velho e Cabanagem II atendem a um mercado que se estabeleceu na área de expansão urbana de Belém, indo do complexo do Entroncamento até o distrito de Icoaraci. Segundo alguns moradores, mesmo as lideranças comunitárias da área possuem envolvimento com esta rede criminosa, que se tornou famosa com a ação de traficantes como "Dote" e "Zé Ribeiro".

"A Cabanagem é o tipo de bairro que foi sendo tomado pelos chamados 'médios traficantes'. São aqueles que fornecem drogas ao 'boqueiro', que vende nas bocas de fumo, e servem como intermediários entre estes e os grandes comerciantes", diz o delegado Hennisson Jacob, titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Divisão de Repressão ao Crime Organizado (DRCO) da Polícia Civil do Estado. "É um fenômeno que identificamos lá e também na Sacramenta, que é outro foco de criminalidade. Difere, por exemplo, da Terra Firme, onde o pequeno traficante impera", complementa.

Segundo o titular da DRE, a identificação de uma rede articulada nas imediações da Cabanagem irá motivar operações especiais ao longo do ano que vem. Até este mês já foram mais de 300 kg de cocaína apreendidos em 2009 no Pará, durante ações que focalizam principalmente os grandes traficantes. Os próximos meses, no entanto, serão de combate à ramificação do tráfico em zonas de vulnerabilidade social da região metropolitana. "Em 2010 pretendemos combater o chamado 'tráfico doméstico'. É aquela coisa da boca de fumo instalada no meio do bairro, que leva violência e criminalidade ao entorno dos moradores. Esse tipo de rede tem levado a surtos de violência e precisa, também, ser combatida", acredita o delegado Hennisson.

"Dote" e outros traficantes mancham imagem da Cabanagem

A imagem negativa que cerca o bairro da Cabanagem pode, em grande parte, ser atribuída à figura de Jocicley Braga Moura, o "Dote". Nascido e criado no bairro, o jovem ascendeu no tráfico de drogas aos 12 anos de idade, quando, segundo a Polícia Civil, passou a comandar a área. Segundo as autoridades, "Dote" é um dos maiores traficantes do Norte e Nordeste brasileiros. Responde a processos pelo crime nos Estados do Ceará, Paraná, São Paulo e Amazonas, onde tinha bases, além de exercer influência até hoje na Cabanagem, em Belém.

O jovem também responde pelo crime de homicídio, praticado contra sua namorada, a modelo Vanielle Albuquerque, em Fortaleza, no ano de 2007, e por ter planejado assassinar o delegado Éder Mauro Barra, titular do Grupo de Polícia Metropolitana (GPM) da Polícia Civil. O delegado, conhecido por seu trabalho intenso no combate ao tráfico na Cabanagem, foi ameaçado de morte dias após desmantelar laboratórios de preparo de droga no bairro, no ano passado.

Depois de meses de investigação associada às ameaças, "Dote" foi preso em fevereiro deste ano, mas foi solto no mês seguinte. Ele voltou a ser capturado em Manaus (AM) no mês de julho, mas foi novamente posto em liberdade em outubro, com base em habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Desde então, responde aos processos em liberdade - mas moradores da Cabanagem dizem que sua família permanece no comando do tráfico naquela área.

Outros grandes traficantes e matadores da Cabanagem são Valdiclei Vieira de Souza, o "Cleinho" - o pistoleiro contratado para matar Éder Mauro -, que teria mais de 20 homicídios nas costas; "Jacaré", "Boca" e "Ema" - todos comparsas e atuantes na área de "Dote"; e José Roberto Fernandes Barbosa, o "Zé Roberto", que seria o principal financiador das ações de "Dote".

Destes, "Cleinho" é o que está em situação mais complicada: há oito solicitações de prisão preventiva contra o pistoleiro na Justiça. Há, ainda, Antônio Alves Ribeiro, o "Zé Ribeiro". Este foi preso em uma operação da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) ao ser apontado como dono de 80 kg de pedra de óxi. O material, obtido a partir do tráfico internacional, seria repassado pelo acusado, que mantinha bases de atuação na rua Roberto Regateiro, na Cabanagem.

Algumas ocorrências recentes do bairro

26/5

PMs da 5ª Zpol prenderam Oscar Azevedo Monteiro, de 75 anos, e o conduziram à Seccional da Marambaia. Ele portava um revólver calibre 38 não regularizado com três munições, das quais duas deflagradas. Ele fez vários disparos em via pública, na rua Val-de-Cães, na ocupação Cabanagem II, e foi flagrado pela polícia após denúncia de populares. Cabo reformado do Exército, o acusado se intitulava, segundo moradores, "dono da rua".

22/8

Uma guarnição da 1º Zona de Policiamento, da PM, prendeu o sexagenário Isidoro Sena Melo, 63 anos. Ele confessou ter estuprado e assassinado uma jovem de 18 anos, no dia 22, na Cabanagem. O acusado é primo da mãe da vítima. O inquérito instaurado na unidade policial indicou, desde o início, o envolvimento dele no crime, já que, na casa em que a vítima foi encontrada morta, foram encontrados um par de chinelas e uma bermuda suja de sangue pertencentes ao acusado.

11/10

Um homem identificado apenas como “Bombom” matou Roberto Silveira da Conceição, de 40 anos, por volta das 3h30 na rua do Fio, próximo à rua Damasco. Depois de matar Roberto, “Bombom” foi perseguido por familiares da vítima, alcançado e morto a pauladas, chutes e terçadadas, na esquina das ruas Treze de Junho e Benjamim. "Bombom" e Roberto estavam em uma festa e no horário citado saíram do local. Instantes depois, as pessoas que estavam na festa ouviram barulho de tiros e encontraram Roberto já ferido pelos disparos feitos por “Bombom”.

28/10

Daniele Alves dos Santos, de 36 anos, foi morta a facadas no interior de sua casa, na passagem São Francisco, próximo à avenida Independência. Moradores da área informaram que Daniele era traficante e teria se desentendido com dois homens por conta de uma dívida. Ela tinha passagens pela polícia sob o apelido de "Fia", morava sozinha e tinha pelo menos nove filhos - todos foram entregues para adoção ou abandonados.

31/10

O mototaxista Iracito Teixeira dos Santos, de 19 anos, residente no bairro da Cabanagem, em Belém, foi assassinado por dois motoqueiros. O crime aconteceu no ponto de mototáxi onde a vítima trabalhava, na avenida Independência, esquina com a rua Brasil. Os assassinos deram pelo menos seis disparos à queima-roupa em Iracito, fugindo em uma motocicleta preta sem roubar nada. Iracito era acusado dar fuga para marginais em assalto na Cabanagem.

7/11

Eduardo Silva Gonçalves, 34, foi morto a tiros e com uma pedrada na cabeça, na rua São Paulo, em frente ao Posto de Saúde da Cabanagem, por volta de 2h. A vítima trabalhava como segurança de festas no bairro e voltava para casa quando foi atacada. As pessoas que estavam no posto de saúde não quiseram comentar o crime, tampouco moradores. Por conta da 'lei do silêncio', o caso foi registrado na Seccional da Marambaia e não resultou em prisão.

9/12

Edson Netos Corrêa, de 21 anos, foi assassinado a tiros na rua Benjamim, dentro da ocupação do Ferro Velho, localizada na avenida Independência, bairro da Cabanagem. Edson foi morto por volta das 21h, com um único tiro na cabeça. O suspeito de ter sido o autor do disparo fatal é conhecido como "Taramatã", mas não foi identificado pela polícia. Há ainda a informação de que "Taramatã" teria agido em companhia de outros suspeitos. A suspeita é de um acerto de contas.

15/12

Um adolescente de 17 anos foi morto a tiros em plena avenida Independência, a cerca de 200 metros da avenida Augusto Montenegro, no bairro da Cabanagem. O rapaz caminhava sozinho pela avenida às 4h quando dois homens que estavam numa motocicleta aproximaram-se dele e atiraram, provavelmente usando uma pistola ponto 40. Sobre a moto e sobre os assassinos a Polícia Civil ainda não tem qualquer informação. Familiares da vítima estiveram no local, mas não quiseram se pronunciar.

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