terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Dez denúncias por dia de crimes de pedofilia no Pará

Número de prisões e denúncias surpreende. Mesmo assim, Pará ainda carece de sistema adequado de investigação de casos.

GUTO LOBATO
Da Redação

Casos de violência sexual contra crianças e adolescentes geram escândalo por natureza - afrontam uma série de princípios fundamentais e, regra geral, transcorrem a portas fechadas, dificilmente chegando à esfera policial. Quando vão parar nas páginas da imprensa, indicam um esforço maior no combate à prática. Pois é: ultimamente, ocorrências desse tipo têm povoado os noticiários com frequência cada vez maior. Em média, dois abusadores são presos por semana no Estado. É um reflexo tanto do volume crescente de denúncias registradas - 1.238 foram colhidas pelo Centro Integrado de Atenção a Vítimas de Violência Sexual (Pró-Paz), só de janeiro a novembro - quanto da maior celeridade que os processos têm tido no Poder Judiciário. Só nos primeiros 15 dias de novembro, foram quatro mandados de prisão expedidos pela Justiça e cumpridos pela Polícia Civil.

O dado volta a reforçar o estigma que ainda incide sobre o Estado do Pará, quarto colocado nacional em número de denúncias ao Disque 100, segundo dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), vinculada à Presidência da República, e condiz com as próprias estatísticas anuais do Pró-Paz - órgão estadual que abrange ações de acolhimento de vítimas e investigação policial dos casos. São dez denúncias encaminhadas diariamente ao programa, que, a despeito de suas limitações estruturais, precisa prestar levar adiante inquéritos de grande complexidade em todo o Estado.

Por outro lado, a força-tarefa que se instalou na Assembleia Legislativa do Estado (Alepa) há dez meses, com a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, coletou dados bem mais impressionantes durante uma extensa apuração em Belém e no interior do Estado. Apesar de não ter a investigação de casos policiais entre suas atribuições, o órgão conseguiu, em dez meses de CPI, produzir relatórios aprofundados sobre 140 casos de abuso da capital e do interior paraenses.

Em termos de número bruto de denúncias, porém, a situação é bem mais preocupante: 26 mil casos de abuso foram registrados no Estado nos últimos cinco anos, segundo o deputador Arnaldo Jordy (PPS), relator da CPI. "Se levarmos em conta as estimativas com que se trabalha no Brasil, ou seja, de que para cada caso denunciado há outros quatro ou cinco que são desconhecidos, devemos ter uns 100 mil casos de violência sexual no Pará", estima. “Combinando isso ao fato de que apenas 2% dos casos registrados chegaram a ser sentenciados na Justiça, temos em mão um contexto de muitas situações de abuso que raramente resultam em punição”.

Independentemente da estatística adotada – a da CPI, cujo relatório final será divulgado em janeiro, ou a do Pró-Paz –, há uma tendência perceptível: o número de denúncias só faz aumentar a cada ano. Mas as autoridades não creditam tal fato à disseminação do crime. A tendência, nacional, resultaria de duas mudanças recentes. Em primeiro lugar, a instalação de CPIs dedicadas à questão dos crimes sexuais e de campanhas de erradicação concentradas em regiões como a Norte e a Centro-Oeste, líderes nacionais em registros do Disque Denúncia (veja quadro). Além disso, a coragem das vítimas em denunciar aumentou – talvez por consequência do maior debate em torno do tema.

“Antes havia uma aceitação passiva por parte não só das vítimas, que sofrem ameaças, como também das famílias. A presença do tema na mídia e as condenações que a Justiça tem apresentado nos últimos meses estão mostrando à população que, há, sim, como tornar o abuso sexual caso de polícia”, diz a delegada Aline Holanda, 16 anos de Polícia Civil, há um ano e meio no Pró-Paz. “Isso resulta em mais celeridade, inclusive, na Justiça. A CPI colaborou amplamente com isso. Já foram sentenciados 57 casos só neste ano, contra menos de 100 nos cinco anos anteriores”, complementa Jordy.

Internet e ciclos de abuso familiar preocupam

Na contramão dos esforços do Estado, os perfis de abusadores e vítimas não sofreram grandes transformações. Dados do Pró-Paz e da CPI da Pedofilia apontam que mais de 80% dos abusos ainda transcorrem dentro do ambiente familiar. Os autores de violência sexual, geralmente, são do sexo masculino – pais, padrastos, vizinhos, irmãos, até. Todos se aproveitam da ausência dos responsáveis (mães, sobretudo) para consumar atos que vão do assédio ao coito forçado, muitas vezes resultando em lesão grave, gravidez e até morte das vítimas.

Há, também, o abusador que se aproveita de redes sociais na internet para buscar vítimas, em especial jovens. Por vezes, o material coletado se transforma em vídeos e fotos que são veiculados na rede. “Essas características dificultam a investigação policial. Os crimes de abuso não têm testemunha, o principal valorante é o depoimento da própria vítima”, diz a delegada Aline Holanda. “Mas temos vários mecanismos de investigação para suprir esta lacuna. Investigadores e peritos são capazes de mensurar a situação de abuso e constatá-la após a abertura de inquérito. E no caso de vídeos e uso de aparelhos eletrônicos, temos apoio de policiais especializados na área”.

As vítimas menores de 18 anos, geralmente do sexo feminino, são alvo de abuso independentemente do grupo etário – mas há um dado surpreendente: o de que 20% dos casos registrados no Pará atingem crianças entre zero e cinco anos de idade. Essa informação foi constatada durante as audiências e apurações da CPI da Pedofilia em Belém e em 30 municípios-polos do interior. Outro dado capaz de gerar consternação foi registrado na Grande Belém no ano passado. Dos 950 abusos registrados em 2008 na capital, 62 foram praticados contra crianças de zero a dois anos. Trinta delas tiveram de passar por cirurgias de recomposição de órgãos genitais.

Há, no entanto, uma característica do abuso intrafamiliar que começa a ser mudada com o aumento no número de denúncias, segundo a delegada Aline Holanda. “Infelizmente, sabemos que casos de abuso tendem a se reproduzir de geração em geração dentro da família. Com as prisões que efetuamos – só em julho foram sete – e o encorajamento das vítimas em procurar a polícia, esse ciclo de violência começa a se partir”, diz. “Hoje vemos que mães de crianças abusadas vêm do interior, pegam seu barquinho para chegar a Belém e registrar ocorrência no Pró-Paz. Esse é o primeiro passo para a mudança”, conclui a delegada.

Pró-Paz possui apenas 30 funcionários e atuação restrita

A precariedade do sistema de proteção à criança e ao adolescente têm, senão grande parcela de culpa, ao menos forte influência sobre a situação de impunidade que se configura no Pará. Sucateado em recursos humanos e materiais, o Pró-Paz é o principal centro de atendimento a vítimas de crimes sexuais do Norte e Nordeste do país. Foi fundado em 2004 e trabalha, hoje, com 30 servidores para atender a uma média de dez denúncias diárias, prestando atendimento psicossocial e abrindo inquéritos investigativos. Detalhe: em apenas uma sede, localizada em Belém.

Quem mora em Redenção, no sul do Estado, e deseja ser atendido pelo Pró-Paz precisa viajar nada menos que 920 km até a capital, por exemplo.“Nós já temos um leque de solicitações para ampliar nosso sistema de atendimento às vítimas de crimes sexuais no Estado. Isso está em discussão. Hoje trabalhamos com delegados, investigadores, escrivães, médicos pediatras e ginecologistas, assistentes sociais e psicólogos. Mas infelizmente ainda não há previsão de essa estrutura se interiorizar”, diz a coordenadora estadual do Pró-Paz Eugênia Fonseca. “Mas sabemos que o número de casos denunciados aumentou e nosso contingente policial precisa se adaptar a isso. Nossa equipe é pequena e faz esforços sobre-humanos para atender à demanda de casos do Estado”.

Na teoria, qualquer delegacia de Polícia Civil está pronta para registrar – e investigar – ocorrências de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Na prática, porém, só há equipes capacitadas para essa modalidade no Pró-Paz de Belém. A delegacia instalada na Fundação Santa Casa de Misericórdia e a sede administrativa, que fica na sede da Divisão de Atendimento ao Adolescente (Data), só têm efetivo para funcionar durante o dia – horário no qual, sabe-se, ocorre a minoria dos abusos registrados. “Isso é muito grave. Identificamos que a falta de uma estrutura específica para estes crimes no interior só faz aumentar a sensação de impunidade e a falta de informação sobre o abuso sexual”, diz o deputado Arnaldo Jordy. Segundo o relator da CPI da Alepa, o relatório final da comissão, a ser entregue em janeiro, trará provas materiais que apontam a urgência na estruturação da rede de proteção de crianças e jovens vítimas de abuso.

Segundo a coordenadora do Pró-Paz, no entanto, a população possui subsídios para encaminhar seus casos, mesmo residindo no interior. “As delegacias dos municípios podem registrar os casos e tramitá-los para nós, e isso já é feito em várias cidades do Nordeste paraense e da Ilha do Marajó, por exemplo. Temos essa comunicação. Além disso, as famílias podem buscar órgãos de assistência social que farão o acompanhamento psicossocial inicial, encaminhando as vítimas para nossa equipe multidisciplinar”, afirma Eugênia Fonseca.

Nova lei do estupro modifica enquadramento penal

Desde o mês de agosto, o enquadramento penal da violência sexual sofreu amplas transformações por conta da Lei nº 12.015. A nova lei de crimes sexuais demorou cinco anos para ser publicada, e não sem motivos: há mudanças sensíveis, como a do artigo 213, que tipifica o crime de estupro e tradicionalmente fazia diferenciação entre sexos, e a das sanções penais, que se tornam mais ou menos severas conforme a idade da vítima.

Antes, somente poderia ser vítima de estupro quem fosse do sexo feminino, já que a lei só previnha penas para autores de coito vaginal forçado. Com a nova redação, o estupro se tornou o ato de "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal“ ou a praticar “outro ato libidinoso”. "Essa nova redação é uma vitória no sentido de enquadrar quem abusa de uma criança do sexo masculino pelo crime de estupro", diz Eugênia Fonseca, coordenadora estadual do Pró-Paz. "Antes, só podíamos encaminhar casos de meninos como atentado violento ao pudor", complementa.

Outra "vantagem" em relação à punição de acusados de crimes contra crianças e adolescentes é a variação das penas. Em casos "tradicionais" de estupro - contra maiores de idade, sem resultar em lesão corporal ou morte -, os condenados cumprem de seis a dez anos de prisão. Porém, se a vítima tiver entre 14 e 18 anos de idade, a pena aumenta para de oito a 12 anos. A situação fica ainda mais grave em caso de menores de 14 anos ou "vulneráveis" - o acusado pega de oito a até quinze anos de cadeia e terá seu caso apurado pelo Ministério Público, haja ou não vontade da família da vítima em levar o caso adiante.

Em caso de o estupro resultar em gravidez da vítima do sexo feminino, todas essas penas ainda podem ser agravadas em até 50%. E, se a vítima morrer em decorrência do abuso, a pena aplicada pelo Judiciário pode ir de 12 a até 30 anos. Há, no entanto, um ponto polêmico: a extinção do crime de atentado violento ao pudor. Antes os casos de abuso tinham o enquadramento duplo de estupro e atentado; agora, no entanto, os acusados terão "apenas" uma sanção penal pelo crime que cometem. Conheça mais a Lei nº 12.015 acessando o site http://www.planalto.gov.br.

Mapa da violência contra crianças e adolescentes

* No Brasil:

- A cada dia, 165 crianças e adolescentes são vítimas de violência sexual no Brasil – a maioria dentro de casa. Dados nacionais do Disque Denúncia apontam mais de 87 mil denúncias entre 2003 e 2009; 31% delas são de violência de natureza sexual. Destas, 57% se referem a abusos sexuais e 40% à exploração sexual;

- Os estados mais críticos, à exceção do Maranhão (MA), ficam nas regiões Norte e Centro-Oeste, líderes em número de denúncias para cada 100 mil habitantes;

- As regiões que registram a maioria dos casos por grupo de habitantes são o Centro-Oeste (65 denúncias para cada 100 mil habitantes) e o Norte (59 denúncias/100 mil hab.). A região que tem o menor número proporcional de denúncias por habitante é o Sudeste (36 por 100 mil hab.);
* No Pará:

- O tipo de violência contra crianças e adolescentes mais frequente ainda é a violência física e psicológica, com 2.580 casos registrados entre 2003 e 2009 no Disque Denúncia. O abuso sexual figura em terceiro lugar nesse montante, com 1.215 denúncias;

- Os dados da CPI da Pedofilia, no entanto, apontam 26 mil ocorrências de violência sexual no Pará nos últimos cinco anos. Já o Pró-Paz diz acolher uma média de dez denúncias por dia no Estado. De janeiro a novembro deste ano, o órgão estadual registrou 1.238 casos;

- Somente 2% dos 26 mil casos de abuso registrados no Estado resultaram em sentenças junto ao Poder Judiciário, de acordo com a CPI da Pedofilia. 20% dessas agressões são contra crianças de zero a cinco anos de idade, segundo o relatório da Alepa;

Estados que mais denunciam no Brasil
Fonte: Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDDH)/ Presidência da República
Período: 2003-2009

1. Distrito Federal (DF)
2. Mato Grosso do Sul (MS)
3. Maranhão (MA)
4. Pará (PA)
5. Amazonas (AM)

Denúncias nas regiões brasileiras
Fonte: Disque Denúncia (100)
Período: 2003-2009

1. CENTRO-OESTE: 65,42 denúncias/ 100 mil habitantes
2. NORTE: 59,43 denúncias/ 100 mil habitantes
3. NORDESTE: 56,33 denúncias/ 100 mil habitantes
4. SUL: 43,51 denúncias/ 100 mil habitantes
5. SUDESTE: 36,23 denúncias/ 100 mil habitantes

Alguns casos recentes de abuso no Estado

11/11 - Marabá

Valter Pereira dos Santos, 32, foi preso sob acusação de ter abusado sexualmente de dois meninos, de 11 e 13 anos de idade. O caso foi investigado pela Seccional de Marabá e contou, na investigação, com auxílio de uma câmera que flagrou o acusado no momento em que aliciava os menores com brinquedos.

3/11 - Tailândia

Depois de sete dias sequestrada e sofrendo abusos sexuais, uma garota de 12 anos foi localizada pela polícia de Tailândia. A vítima foi raptada em 26 de outubro e foi encontrada com o acusado do crime, José D. G., de 43 anos, empregado da família. Em depoimento, ele confessou ter abusado sexualmente da garota.

2/10 - Novo Repartimento

Elieudes Mourão Silva, 32, foi preso em flagrante em Novo Repartimento, sudeste do Pará, após ter abusado de uma criança de três anos. Com ele, foram encontradas três páginas de revistas pornográficas. O acusado já havia tentado molestar uma adolescente de 15 anos, da mesma família, há um mês.

5/11 - Ourém

Carlos Ribeiro dos Santos, 47 anos foi preso acusado de abusar sexualmente da própria enteada, uma criança de apenas 7 anos, em Ourém, nordeste paraense. Em depoimento, a mãe da vítma afirmou que já havia sido alertada pela criança sobre os abusos, mas não a afastou do marido.

6/11 - Mosqueiro

Paulo Moisés Gomes Tavares, 50 anos, foi preso no distrito de Mosqueiro após ser flagrado com uma criança de 8 anos dentro de sua residência. Vizinhos constataram a situação e acionaram a Polícia Militar (PM). Dois dias depois, o acusado foi encontrado morto dentro da cela do xadrez. Ele estava enforcado com uma peça de roupa.

8/10 - Ananindeua

Paulo Batista Grigório, de 25 anos de idade, foi preso no Distrito Industrial, em Ananindeua, sob a acusação de abusar da enteada de 14 anos, além de agredir e ameaçar a esposa de 37 anos. A jovem informou à polícia que seu padrasto tocava em suas partes íntimas, ameaçando-a com uma faca.

12/10 - Marituba

O pedreiro Kenedy Gomes Pureza, de 45 anos de idade, foi preso na seccional de Marituba sob acusação de crime de estupro contra a enteada de apenas nove anos. O acusado foi preso porque a mãe da vítima flagrou o companheiro alisando os seios da criança no banheiro.

14/10 - Belém

José Roberto Barbosa Baía, 31 anos, o "Beto", foi preso por policiais da Seccional da Sacramenta acusado de engravidar uma menina de 12 anos de idade. A vítima estava à época com cinco meses de gestação, mas os abusos teriam começado há mais de um ano. José também é acusado de fazer sexo com a irmã de 11 anos da vítima.

19/11 - Bragança

Hamilton Brito da Silva, 41 anos, foi preso e confessou ter violentado a filha por mais de uma década em Bragança, sudeste do Estado. A menina, atualmente com 14 anos, engravidou duas vezes, mas perdeu os bebês-irmãos. O caso foi denunciado ao Conselho Tutelar de Bragança pela própria vítima.

19/11 - Icoaraci

João Batista Nogueira Barbosa, o "Jura", foi denunciado ao Ministério Público de Icoaraci sob a acusação de abusar sexualmente de uma menina de 11 anos. Ele relatou à polícia que há quase um ano vinha convivendo com a menina, inclusive, mantendo relações sexuais, com consentimento da família.

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