sábado, 8 de maio de 2010

Comércio, arquitetura e história – tudo num só lugar*

Exemplares de bela arquitetura, resquícios de uma história marcada pelo tino comercial brasileiro, mercados centrais compõem paisagem histórica das principais capitais do país

Por Guto Lobato
* Texto publicado na edição "Centro" da Revista MAG.

Já se tornou uma espécie de consenso afirmar que a alma de toda grande cidade está em seu centro histórico. É por lá que se concentram as principais edificações históricas, monumentos e ruelas que acentuam o conflito urbano – cada vez mais aparente, em termos de Brasil – entre tradição e modernidade. Mas, no meio de tudo isso, há quem não perceba que alguns espaços dedicados ao comércio têm mais história que muito museu. É só pensar nos mercados centrais – estes que, lutando contra a passagem do tempo, têm se mantido de pé e virado pontos turísticos tão visitados quanto igrejas, casarões e complexos arquitetônicos.

Antes de figurar nos cartões-postais de várias cidades brasileiras, no entanto, os mercados centrais já eram uma tradição que apontava o apreço do país pelo comércio. Relatos históricos apontam que, em meados dos séculos XVII e XVIII, capitais como Salvador, Rio de Janeiro, Fortaleza e Recife já tinham seus mercadinhos. No interior do país, a coisa era igual: mal uma vila era fundada por uns poucos colonos e eles já eram erguidos – inicialmente, sem muita imponência, servindo como ponto de encontro de comerciantes, artesãos, pescadores e, vá lá, gente que fazia uma visita à cidade e queria levar algo de recordação.

Nada de anormal: delimitar espaços para o comércio sempre foi uma forma de concentrar atividades e organizar as cidades coloniais brasileiras, recebendo produtos, gente e serviços oriundos do velho continente. Àquela época, diga-se de passagem, ter um mercado na cidade era tão relevante quanto ter uma igreja matriz, convento, escola ou praça central; era um ponto de referência nos caóticos mapas urbanos planejados – e raramente postos em prática – pela Metrópole portuguesa.

A princípio, palavras como “arquitetura” e “engenharia” passavam longe desses espaços comerciais. Os mercados não passavam de casebres, feiras cobertas e galpões frágeis, construídos sem muito rigor estético, situados às proximidades de portos e estradas. O público frequentador era dividido entre poucos visitantes e muitos escravos, que aturavam o mau cheiro e a desorganização das lojas para comprar gêneros alimentícios, bugigangas e produtos de uso doméstico. Peixes, carnes, tecidos, artigos de higiene pessoal, animais vivos, materiais de construção e até “moças de companhia” decadentes – de tudo um pouco se encontrava por ali, sem direito a regalias como nota fiscal, valor fixo ou venda a crédito.

Mas, como tudo no Brasil, os mercados tiveram de se adaptar à mudança dos tempos e disfarçar seu ar bagunçado. Na virada do século XIX para o XX, quase todas as capitais já ganhavam ares de cidade grande e formavam uma economia pungente. Os centros comerciais começavam a ser frequentados por gente abastada e o potencial turístico já era vislumbrado pelas autoridades. Era questão de tempo para que os galpões e feiras cobertas começassem a ter seu charme descoberto – ou melhor, criado...

Século XX: investimentos e arquitetura suntuosa

O que é curioso observar é que, de forma geral, a fundação dos mercados centrais mais famosos do Brasil não ocorreu nos tempos de colônia. Foi só dos anos 1900 em diante que o embelezamento das capitais e grandes cidades pelos governos passou a levá-los em consideração. É só conferir as datas de fundação de alguns: em 1912, foi inaugurado o primeiro prédio do Mercado Modelo de Salvador (o atual, na praça Visconde de Cayru, só começou a abrigá-lo no final dos anos 1960); em 1911, o Mercado de São Braz, em Belém; em 1933, o Mercado Municipal de São Paulo; e, em 1929, o Mercado Central de Belo Horizonte.

Todos têm uma característica central em sua arquitetura: o uso conjunto de diversos movimentos estéticos, indo do neoclássico ao art-nouveau e o ecletismo europeus. Isso acabou por revestir os mercados de uma relevância histórica e paisagística impensável nos tempos de colônia – afinal de contas, por que diabos pôr madeiras e rochas nobres, vitrais e charmosos trabalhos em ferro em centros de comércio popular? Foi o tipo de preconceito que tardou a sumir na engenharia e arquitetura do país. Mas, justiça seja feita, nem todos os governantes pensavam assim nos anos 1800. Raras exceções nesse contexto de valorização tardia são os mercados de São José e da Boa Vista, em Recife, inaugurados ainda durante o século XIX.

O primeiro, situado no bairro homônimo, foi resultado de um projeto visionário da Câmara Municipal de Recife, que buscou inspiração no mercado de Grenelle, em Paris, para projetar uma imensa estrutura de ferro onde conviveram – e convivem – desde músicos, poetas e artistas populares até vendedores de peixe, frutas, carnes e artesanato. A construção foi feita na Europa e transportada até Recife, o que torna o São José o mais antigo edifício pré-fabricado em ferro do Brasil. Já o mercado da Boa Vista – hoje ponto de intensa atividade noturna e gastronômica – é um mistério para os historiadores: apesar de só ter sido reaberto em 1946, documentos apontam que sua construção, em estilo colonial tardio, ocorreu no século XIX, a tempo de o local ter sido um mercado de escravos. Situado perto da Igreja de Santa Cruz, a área de seu prédio também teria sido usada como cemitério e estrebaria da então capela.

Durante o século XX, a valorização do comércio popular fez com que se investisse cada vez mais na inauguração de mercados práticos e com boa capacidade de utilização. A ideia de aliar beleza e praticidade pode ser vista em mercados como o Municipal de São Paulo, que é decorado por vitrais, colunas e pilastras de inspiração clássica, mas nem por isso deixa de ser um importante centro de vendas, com mais de 12,6 mil metros quadrados de área construída, ou o Municipal de Curitiba, inaugurado nos anos 1950 com uma estrutura suntuosa que não para de crescer (a ideia é chegar aos 30 mil metros quadrados!)

Fora os aspectos visual e estrutural, os mercados centrais passaram, também, por mudanças na sua rotina de comércio. Mais turistas, mais moradores, mais demanda – com isso, vender alimentos e artesanato todo santo dia poderia ser um erro fatal. A solução encontrada foi transformá-los em verdadeiros “mini-shoppings” de preço popular, onde se encontra todo tipo de artigo – desde vinis empoeirados até roupas, móveis, artigos eletrônicos e comida a quilo. Coisas impensáveis no meio mercantil do início dos anos 1900, como restaurantes, estacionamentos e guias turísticos, já não são difíceis de achar em mercados como o Modelo, em Salvador, ou o Central de Fortaleza, que de histórico pode não ter muita coisa – seu atual prédio foi inaugurado em 1998 –, mas é um dos mais procurados do Brasil por sua oferta de produtos e serviços.

Revitalização, turismo e vida noturna em alta

Com o tempo, as designações da economia e o estabelecimento das capitais como centros de serviços fizeram com que os mercados ficassem à beira de perder função. Quer comprar carne? Vá ao supermercado. Roupas, tecidos, móveis, artesanato? É só procurar em qualquer comércio – seja em shoppings, seja em lojas de rua nos modernos bairros comerciais. Até mesmo a comida regional, tradicionalmente servida em restaurantes nos mercados do Norte e Nordeste, pode, agora, ser obtida num restaurante mais luxuoso e bem situado. Enfim – não faltam opções e alternativas para quem não quiser se acotovelar em meio à bagunça dos mercadões e feiras cobertas.

Tudo conspirou a favor do desaparecimento desses espaços tão peculiares e consagrados popularmente. Até mesmo o acaso quis o fim da tradição mercantil; basta lembrar dos cinco (cinco!) incêndios que atingiram o Mercado Modelo de Salvador, desfigurando sua estrutura gradativamente ao longo do século XX, e do fogaréu que danificou parte do Mercado São José, de Recife, já ao final dos anos 1980. A degradação do Mercado de São Braz e do antigo Mercado de Ferro, situado no complexo arquitetônico do Ver-o-Peso, em Belém, também tem a ver com a desvalorização de espaços destinados ao comércio popular.

Mas, contrariando a tendência natural do país, a ideia de recuperar os mercados de aparência mais, digamos, degradada – para não dizer acabada – virou moda. E o melhor de tudo: incentivada pelos próprios governos, preocupados com a perda da identidade dos locais e, claro, das verdinhas atraídas pelo turismo histórico. É aí que chegamos, enfim, ao estado atual dos mercados brasileiros – de centros comerciais a polos turísticos, gastronômicos e de artesanato, que entretem visitantes e moradores com seu “caos organizado” e pouco a pouco são tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Obras de revitalização dos mercados têm sido organizadas nos quatro cantos do país. O de Curitiba já está em fase de expansão e inaugurou, no ano passado, a primeira feira de orgânicos do país. O de Fortaleza, já vislumbrando a chegada de turistas na Copa de 2014, tem um projeto de recuperação em fase de debate. O de São Braz, em Belém, foi reformado e está à procura de recursos para, à moda dos demais, virar centro de atrações culturais. O de São Paulo, que em 2004 ganhou um mezanino cheio de restaurantes e bares, após anos de reforma, pode ganhar em breve um estacionamento subterrâneo com 400 vagas de capacidade, no intuito de suportar o número crescente de visitantes. Até movimentação noturna já foi experimentada – e deu certo – nos da Boa Vista e de São José, em Recife.

São, enfim, indícios de que a curiosa relação mantida entre o brasileiro e seus mercadões municipais está longe de definhar. Seja para comprar a comida do almoço, o souvenir de presente para os familiares, a rede que vai ser pendurada na varanda, o vinil que não se encontra mais em lojas ou mesmo para sentar e tomar um chope com os amigos numa noite descompromissada, esses gigantes de ferro e concreto continuam em alta, lembrando-nos da história de nossas cidades e enriquecendo-as a cada dia.

Mercados municipais Brasil afora

- Mercado Modelo (Salvador/BA)
Endereço: Praça Visconde de Cayru, s/n
Bairro: Comércio

- Mercado Municipal (São Paulo/SP)
Endereço: Rua da Cantareira, 306
Bairro: Centro

- Mercado Central (Belo Horizonte/MG)
Endereço: Avenida Augusto de Lima, 744
Bairro: Centro

- Mercado Central (Fortaleza/CE)
Endereço: Avenida Alberto Nepomuceno, 199
Bairro: Centro

- Mercado Central (Curitiba/PR)
Endereço: Avenida Sete de Setembro, 1865
Bairro: Centro

- Mercado São José (Recife/PE)
Endereço: Praça Dom Vital, s/n
Bairro: São José

- Mercado da Boa Vista (Recife/PE)
Endereço: Rua Santa Cruz, s/n
Bairro: Boa Vista

- Mercado de São Braz (Belém/PA)
Endereço: Praça Floriano Peixoto
Bairro: São Braz

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