sábado, 8 de maio de 2010

Fazendas verticais*

A ideia é boa, mas ainda esbarra na velha – e nem tão boa assim – economia. Cultivo na agricultura high-tech seria sustentável e, de quebra, próximo aos centros econômicos e de serviços.

Por Guto Lobato
* Publicada na revista Spot, da Eberle Fashion

A cena poderia fazer parte de um conto escrito por Aldous Huxley: você entra num restaurante em pleno centro financeiro de São Paulo e pede uma salada Ceasar acompanhada de suco de frutas. Até aí, nada de estranho – é a típica receita saudável de hora de almoço numa cidade grande. Mas... e se todos os ingredientes fossem colhidos dali a alguns poucos quarteirões, num arranha-céu verde encravado em plena avenida Paulista? A ideia de instalar espaços de agricultura em centros comerciais e de finanças parece maluca, mas já é levada a sério por muita gente – tudo por conta do conceito das chamadas fazendas verticais, centros high-tech de cultura de gêneros que, além de desafiar as lógicas mercantis atuais, propõem novas formas de utilizar o meio ambiente (e o espaço das metrópoles) a favor da alimentação humana.

Seja sob a avaliação de arquitetos, engenheiros, políticos ou de leigos, o projeto das fazendas verticais sugere um típico cenário de ficção científica. As primeiras linhas dele surgiram em 1999, durante uma aula de pós-graduação do microbiólogo Dickson Despommier, professor de saúde pública na Universidade Colúmbia, em Nova Iorque. Junto a um grupo de alunos, o pesquisador iniciou uma série de estudos para descobrir de que forma – e com que grau de eficiência – se poderia incentivar a produção de gêneros alimentícios no meio das metrópoles atuais.

O desafio acabou traduzido no conceito de vertical farming, que logo ganhou repercussão no meio científico com uma série de projetos visuais fascinantes. A ideia é aproveitar a verticalização das metrópoles e o uso de terrenos bem situados para construir imensos edifícios em que frutas, legumes e gente conviveriam em harmonia – e perto dos maiores centros de consumo. O resultado seriam alimentos consumidos de forma responsável – menos transporte de legumes, frutas e verduras, menos CO² na atmosfera – e produzidos sob uma estrutura artifical, porém saudável.

Para tal, buscou-se um apoio na mais moderna agricultura: o cultivo seria feito de forma 100% controlada. O clima – principal inimigo da agricultura atual, com suas maluquices e fenômenos inesperados – seria monitorado dentro dos arranha-céus verdes, protegendo os produtos de geadas, secas, furacões e tempestades. Além disso, o sol, o vento e até mesmo a água utilizada das cidades seriam usados como insumos e fontes de energia sustentáveis.

As vantagens...

Os argumentos favoráveis ao projeto são, de fato, chamativos. No site que Despommier pôs no ar para defendê-lo (www.verticalfarm.com), há uma extensa lista de prós (e nada de contras) que inclui referências apocalípticas à crise no setor de alimentos, às mudanças climáticas e ao boom na população mundial. Nem mesmo as possibilidades do homem vir a habitar outro planeta são descartadas: “Não podemos ir à Lua, a Marte ou mais adiante sem aprender primeiro a cultivar em espaços fechados na Terra”, salienta-se no site.

Outro ponto positivo é que, como que para agregar valor ao projeto, o cultivo de gêneros nas fazendas verticais se propõe mais saudável – não contaria com apoio algum de herbicidas, pesticidas ou fertilizantes. Seriam, enfim, alimentos orgânicos, bem mais saudáveis que aqueles produzidos no meio rural, que chegam diariamente aos nossos supermercados. E por falar em fazendas tradicionais, segundo Despommier, a agricultura indoor é bem mais eficiente e rápida. Cada acre – aproximadamente 4.047 metros quadrados – cultivado nas fazendas verticais produz o equivalente a 4 ou 6 acres do meio rural. Casos como o do morango são ainda mais surpreendentes: os pesquisadores acreditam que cada acre de cultivo indoor fruta tenha a produtividade de 30 acres, digamos, “convencionais”.

Enfim, o que pareceria ser mais um deslumbramento pós-moderno da ciência virou possibilidade. As campanhas de divulgação e apoio à iniciativa de Despommier têm sido constantes e se espalharam pelo planeta, sobretudo entre ambientalistas e arquitetos que veem nas fazendas verticais uma alternativa de “esverdeamento” e sustentabilidade nas fumacentas metrópoles globais. Sonhar com estes latifúndios high-tech, de fato, é alentador: comer uma salada 100% orgânica e, ainda por cima, produzida a poucos metros de casa dá um ar mais saudável a nós, pobres consumidores de transgênicos e alimentos industrializados. Mas, para toda empolgação, há um contraponto. Neste caso, tão relevante quanto o argumento original.

...E os entraves

Mais de 60% da população mundial vive hoje em cidades verticalizadas. Em 2050, estima-se que serão 80%. Ok, até aí nada de novo. O problema é a interpretação desses dados, que apontam que nunca antes o espaço nos centros esteve tão disputado. Se a especulação imobiliária já causa pesadelos em quem quer comprar um simples apartamento no subúrbio brasileiro, imagine em quem precisaria obter um terreno nas zonas mais movimentadas das metrópoles – no caso, os agricultores e donos de propriedades rurais. Tirar um plantador de verduras do interior e pô-lo no meio da cidade grande não é apenas um problema cultural: é, acima de tudo, um impasse econômico.

Despommier acredita que só os custos para a construção de um protótipo de fazenda vertical sejam da ordem de 20 a 30 milhões de dólares. Como a coisa nunca foi posta em prática, ainda não dá para ter certeza do gasto que o produto final terá; mas, ao menos no que tange à torre “padrão” por ele projetada – que, com seus 30 andares, seria capaz de alimentar até 50 mil pessoas –, a estimativa bateria as centenas de milhões de dólares.

Isso fez com que muita gente – de forma precipitada e, quem sabe, preconceituosa – lançasse críticas ferrenhas sobre o professor de 69 anos, conhecido nos Estados Unidos por sua inteligência, seriedade e interesse nas pesquisas em saúde e ecologia. “Por que precisa ser uma torre de 30 andares?”, questiona Jerry Kaufman, professor emérito de planejamento regional e urbano na Universidade do Wisconsin, em Madison. “Por que não podemos ter seis andares? O potencial é inspirador, em termos de conceito, mas acho que ele exagera um pouco quanto aos resultados que poderiam ser atingidos”.

Os questionamentos são pertinentes e não recaem apenas sob o espectro econômico. Há quem argumente que a manutenção das fazendas verticais possa trazer resultados ambientais semelhantes ao do transporte de legumes, frutas e verduras das zonas rurais às cidades. O xis da questão, como tudo nesses tempos de alerta, é, também, a energia: “Existe um dispêndio de energia incorporado ao concreto, ao aço e ao processo de construção”, alertou Armando Carbonell, diretor do departamento de planejamento e design urbano no Instituto Lincoln de Política da Terra, em Cambridge, Massachusetts.

Enfim, a fazenda vertical é o tipo de ideia que soa muito bonita, mas que, para sair do papel, dependerá de muitos investimentos públicos e privados, além do próprio aval de produtores agrícolas e do mercado imobiliário. Afinal de contas, como disse um urbanista ao New York Times, nem sempre um plantador de tomates vai ter dinheiro para comprar um terreno em plena zona nobre de Manhattan. São as tradicionais e irrefutáveis leis da velha (e nem tão boa assim) economia de mercado: anti-ecológica, incompreensiva, mas devidamente encravada nos corações e mentes das nossas metrópoles globais.

Burj Dubai – até onde subir?

Falando em arranha-céus, a inauguração recente de um trambolho de mais de 800 metros de altura em Dubai, nos Emirados Árabes, ajudou a reacender o velho debate: até onde ir nessa busca por construções gigantescas? Vale a pena investir na verticalização urbana ou seria melhor impor regras ao setor imobiliário? O Burj Dubai, sediado na cidade homônima, é o próprio sinal de que o limite ainda não foi estabelecido. Do alto – literalmente – de seus 160 andares, o complexo de torres e edifícios de aspecto monumental surpreende pelos números vultosos.

São 30 mil residências, nove hotéis de luxo (um com sete estrelas), 19 torres residenciais e 57 elevadores dentro de uma estrutura que pesa o equivalente a 100 mil elefantes, totalizando 4,7 bilhões em investimentos. O projeto, executado pela empreiteira Emaar, só foi inaugurado em janeiro deste ano, após seis anos de obras. Não por falta de pressa: desde 2008 já estavam esgotadas as vendas de apartamentos. Mesmo com toda a tecnologia, foi preciso uma força-tarefa para tocar as obras em Dubai – e olha que construções exageradas abundam no Oriente Médio.

Entre as torres que disputavam lugar com o Burj Dubai estão a Taipei 101, de Taiwan, com seus 508 metros de altura, a CN Tower, de Toronto, com 558 m, e o o Empire State de Nova Iorque, com “módicos” 381 m. Tudo, doa a quem doer a realidade, desnecessário – resultado mais do desejo humano de impressionar que de suas necessidades urbanas. Muito embora haja quem defenda a concentração de arranha-céus para tornar a vida na cidade mais prática, uma coisa é fato: nunca antes tê-los significou tanto ostentar poder, econômico ou político. A alma do negócio, enfim, parece estar na imagem, e não na qualidade de vida.

O exemplo de Dubai – que passou por uma crise quando sua empresa Nakheel, que construiu desde arranha-céus até ilhas artificiais, declarou moratória – é caricato, mas basta pensar nas principais cidades brasileiras. Mesmo que sobre terreno no país, que a especulação imobiliária e o reduzido poder de compra da população não conspirem a favor, é fácil encontrar arranha-céus de luxo em várias capitais, alguns com apartamentos a preços de até R$ 1 milhão.

A questão polêmica dessas obras não é de engenharia. Tecnologias atuais, como a fibra de carbono e o concreto armado de alta resistência, são capazes de sustentar construções até maiores que o Burj Dubai – antes da crise financeira mundial, havia um projeto de prédio de 1,2 a 1,4 km de altura na mesma cidade. Sistemas de segurança e transporte, estruturas de base e sustentação são cada dia mais eficientes. Até pôr um luxuoso condomínio de 30, 35 andares sobre um aterro ou lamaçal é tarefa fácil – é fácil de encontrar isso em capitais como Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e Belém (PA). O real dilema está no impacto dessas construções sobre as cidades e seus moradores.

Além de tornar o trânsito em seu entorno caótico, com a concentração de veículos, os arranha-céus podem favorecer a formação de ilhas de calor – o centro do Rio de Janeiro é um bom exemplo –, criar barreiras contra o vento e até promover uma espécie de “feudalização tardia”, concentrando dezenas de serviços em seu interior (farmácias, restaurantes, academias) que tornam seus habitantes cada vez mais sedentários. Pesar a influência dos arranha-céus sobre o meio ambiente e nossas vidas, no entanto, não é o tipo de preocupação que se tem levado em conta. Por enquanto, o que interessa para a gente é imponência, modernidade, luxo – o que significa que muitos Burj Dubais ainda devem vir por aí.

Nenhum comentário:

Postar um comentário