sábado, 8 de maio de 2010

Voz e corpo a serviço da arte*

Bailarina, atriz e cantora profissional por opção, paraense Lorena Lobato investe em carreira múltipla – e bem organizada – no Sudeste brasileiro

Guto Lobato
* Publicada na Revista Living Leal Moreira, edição 24.

A voz pausada e o jeitão tímido não condizem com a mulher de múltiplos talentos – embora o termo lhe dê arrepios – que se esconde dentro dela. Aos 34 anos de idade, Lorena Lobato acumula funções com rara naturalidade. Bailarina desde a infância, atriz e cantora de formação apurada, a paraense estabeleceu carreira em São Paulo após largar emprego, estudos e uma vidinha pacata em Belém. Passou pelo balé clássico, pelo teatro, pelo cinema e pela música, e hoje se esforça para dedicar tempo a tudo isso sem perder o fio da meada.

O currículo de atriz de Lorena não é marcado por papéis e postos de grande repercussão; o que surpreende, de fato, é a versatilidade – e o peso – das parcerias por ela acumuladas. De Suzana Amaral a Selton Mello, Heitor Dhalia e Antunes Filho, a paraense não hesitou em se aproximar das pessoas certas e, à custa de muito treino, conquistar espaço nos elencos. O resultado são participações em filmes como “O cheiro do ralo”, de Heitor Dhalia, e “O sonho bollywoodiano”, que ganhou destaque na 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

“Hotel Atlântico”, longa-metragem de Suzana Amaral (de “A hora da estrela”), é o mais recente trabalho de Lorena no cinema. Nos últimos meses, a maior dedicação tem sido à música – ela está em temporada de shows num dos hotéis mais luxuosos de São Paulo –, mas um monólogo de sua autoria está prestes a estrear no circuito de teatro paulista. Conheça mais sobre as múltiplas carreiras da paraense nessa entrevista concedida em seu apartamento no Sumaré, em São Paulo, poucas semanas antes de uma mudança para o interior do estado:

“Não tem jeito, muito pequena aprendi que não dava para separar música de dança e, mais tarde, do ofício de interpretar”. Essa frase está na descrição do teu blog. Entre tantas atividades, tem como se organizar e distribuir o tempo?

Tudo aconteceu de um jeito natural, mesmo. Minha mãe me colocou no balé aos três anos de idade – e eu não cheguei aos oito, dez anos enjoada do balé, como acontece com muitas meninas. Fiz balé clássico até meus 26 anos. Com oito anos também entrei no Conservatório Carlos Gomes, para estudar piano, e acabei aliando as duas coisas. Aos 17 anos tinha de escolher uma profissão, entrar na faculdade. Aí entrei em jornalismo e larguei a música. Depois vim para São Paulo e acabei entrando no teatro, por indicação de umas colegas de pensão. Aí outros caminhos me levaram de volta até o canto. São coisas que não consigo ver separadas. Às vezes me perguntam: você não devia focalizar uma atividade só? E eu simplesmente respondo que não vejo como fazer isso.

Tomaste um rumo semelhante ao de muita gente que trabalha em teatro, cinema e artes em geral no Brasil: o de se mudar para o eixo do Sudeste. Geralmente o motivo para essa transferência é a falta de oportunidades na terra natal. Tiveste dificuldades em Belém?

Minha vida em Belém estava toda arrumada. Fazia faculdade, dava aula, dançava e era funcionária pública. Mas comecei a sentir falta de algo, nem sabia o que era... acabei me mudando para São Paulo para preencher uma lacuna. A princípio, a ideia era me dedicar à dança. Vendi meu carro, pedi demissão do emprego. Nem sabia o que ia acontecer comigo, mas vim do mesmo jeito. E já estou aqui há 13 anos...

Certamente trazes algo na bagagem sobre Belém. Que lembranças e vivências da cidade mais te marcam até hoje?

Vou falar uma coisa: acho que cada artista traz sua bagagem e contribui com ela em qualquer meio. As pessoas aqui me acham misteriosa, não sabem direito o que se passa em mim... acho que é algo que trago de Belém, que é uma cidade sensorial, cheia de fragâncias, sabores... a cidade é misteriosa, repleta de histórias fantásticas. Acho que todo esse charme da mata vem para o meu trabalho, mesmo que de forma sutil.

Tua estreia no cinema foi em “O cheiro do ralo”, um filme de orçamento pífio (330 mil reais) que ganhou destaque internacional. Como foi a convivência com o Selton Mello e o resto do elenco?

O Selton é o tipo de ator que entende muito do negócio, foi um apoio fundamental. Por exemplo, quando ia fazer a cena com ele, havia os dois momentos: primeiro a filmagem com foco nele, depois na gente. Um ator que não seja muito generoso nem se esforça em atuar na hora que as câmeras não estão em sua direção. Mas quando eu fui gravar minhas cenas – foram cinco, mas só uma acabou sendo aproveitada na versão final do filme –, ele atuou da mesma forma, com a mesma dedicação. Tudo para me ajudar.

Que elementos marcantes podes atribuir à tua personagem?

No filme, ela ficou meio solta. Mas, mesmo assim, virou uma personagem engraçada, porque é a única que realmente contesta o personagem do Selton, que trata todo mundo mal, humilha. Mas sou muito amiga do Lourenço (Mutarelli), que escreveu o livro, e na obra original a personagem é bem mais profunda. Ela começa de um jeito, meio pudica, e com o tempo vai percebendo o jogo que pode fazer com o cara. É aí que ocorre a transformação que resulta na “mulher casada” que aparece no filme.

A velha história de que uma coisa leva à outra também figura nos textos do teu blog. De fato, depois do “Cheiro do ralo” conseguistes reunir com colegas de elenco e ir parar na Índia para filmar “O sonho bollywoodiano”, que estreou na 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Como foi essa viagem?

A gente tinha um roteiro que a diretora levou daqui, já estava pronto. Até achei que a gente podia ter descoberto mais coisas por lá, vivenciando esse argumento das três atrizes que vão na cara e na coragem fazer carreira num país distante. Mas enfim, visitamos nove cidades indianas... foi uma experiência fundamental. Quando estreou, o filme repercutiu muito bem, ficou entre os dez destaques do público na mostra de cinema em São Paulo. Todas as sessões estavam lotadas. Teve até um amigo meu que tentou ver o filme e não conseguiu ingresso (risos)...

E o interessante é que, na mesma época, estrearam um filme (“Quem quer ser um milionário?”) e até uma telenovela (“Caminho das índias”) ambientados na Índia...

Pois é... e a produção do “Sonho bollywoodiano” começou no ano de 2007, isso que é engraçado. É uma coincidência incrível, um monte de coisa da Índia ter aparecido no ano passado. Mas eu vejo muitas vezes isso acontecer: se a gente não executa ideias na hora em que elas aparecem, alguém faz. Parece que certas ideias “pairam” em determinados momentos. Tenho vários amigos atores que já passaram por isso; pensam em algo e, quando menos esperam, se deparam com uma peça igualzinha estreando no circuito.

Vamos falar agora de parcerias de peso – que, por sinal, parecem uma constante na tua carreira. Teu trabalho mais recente no cinema é o “Hotel Atlântico”, da Suzana Amaral. Ela é uma das mais respeitadas diretoras do Brasil. O que aprendeste ao lado dela nesse filme?

Quando ouço falarem desse filme, meu coração derrete. Foi aquela coisa: trabalhar ao lado de um mestre. A Suzana e o Antunes Filho são ícones para mim até hoje. E a Suzana é a mulher que mais conhece de ator no Brasil. Ela sabe muito bem o que quer extrair de cada um, tem um gosto muito apurado. Eu guardei todos os papeizinhos que ela escrevia para mim, com orientações. Vou emoldurar qualquer dia desses (risos). Fiquei completamente satisfeita com o que fiz em “Hotel Atlântico”.

Isso é raro para um ator, não?

Muito. Só aconteceu por conta do apoio da Suzana. Geralmente um diretor gasta horas montando cenário, organizando as coisas e, quando tudo está no ponto, chama o ator para gravar direto. Com ela, foi o contrário. Ela passava horas e horas sozinha com o ator. Mandava todo mundo embora (risos). Só quando ficávamos prontos é que ela chamava a equipe técnica para gravar as cenas.

E ainda tem o Antunes Filho, com quem trabalhaste no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), que é um dos grandes nomes do teatro contemporâneo brasileiro...

Pois é, fiz o teste para o CPT por indicação de umas amigas. Lá são 20 vagas, sendo que se inscrevem umas 900 pessoas em cada seleção. Fiz primeiro uma entrevista, depois mais duas fases eliminatórias. Passei, fiz um curso e o Antunes Filho me chamou para fazer parte do grupo dele – foi quando entrei no elenco da “Medéia”. Engraçado é que muita gente fala mal dele... do seu jeito ríspido de tratar o ator. Parece que conheço outra pessoa, porque penso em Antunes e vejo alguém muito sensato. Toda a rigidez dele é em nome de algo muito maior.

Por falar em rigidez, também mencionaste no teu blog que a dança “te indicou todas as direções”. Em que sentido? A vida de bailarina, cheia de regras e aprendizados, orientou de que forma tuas experiências posteriores?

A dança me ensinou, primeiramente, a ter domínio sobre o corpo. Você consegue encontrar ali, após horas de esforço, o eixo para dar três, quatro piruetas, se equilibrar em uma perna só, e tudo isso é fruto de muito esforço e disciplina. Quando você consegue algo difícil com o corpo, sente que é capaz de fazer o resto. Outro aprendizado é que, com a rotina extenuante, aprende-se que nada cai do céu. Eu nem acredito nessa história de talento...

Como assim?

Acredito mesmo em trabalho e persistência. Também acredito em influências e oportunidades associadas às pessoas com quem você cresce junto. O que te cerca e te influencia define muita coisa.

Hoje dizes ser “mais cantora que atriz”. É algo que tenhas planejado?

É o momento que vivo agora. Já passei por alguns grupos de pop rock, MPB e blues desde que me mudei para São Paulo. Há seis meses estou em temporada no Baretto (bar situado dentro do Hotel Fasano, na capital paulista), toda segunda e terça-feira. Canto por lá junto a um grupo... não é nem um grupo, na verdade. Eles têm um time de músicos que acompanham os cantores nos shows. É um pessoal extremamente experiente. O baterista já tocou com Toquinho, Vinicius, o baixista tocou com o Roberto Carlos, com a Elis Regina... então eles me fornecem um aprendizado imenso. É a isso que estou me dedicando mais.

Que referências adotas atualmente?

No Baretto temos um repertório orientado pra bossa nova e pro jazz. De cantoras, pessoalmente, admiro muito a Etta James. Falo que quando aprender a cantar direito vou cantar blues. O povo do jazz diz que não precisa de grande apuro, porque só são três acordes, mas acho que o blues é muito mais que isso. É um estilo de vida.

Tens um filho de sete anos (Gabriel) que toca piano e estuda violino. Estimulaste-o a correr atrás disso?

Olha, procurei umas escolinhas, mas acho que é muito lento o processo aqui no Brasil. No Canadá, eles dão aula pra criança dentro da barriga, desde os dois anos de idade, é natural. Aqui subestimam muito a capacidade da criança. Acabei dando aulas de piano para ele em casa. Recentemente, ele pediu para fazer violino. Aí chamei um professor particular, músico da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). E o moleque está indo firme. Como tenho amigos músicos e vivo tirando coisas no piano, ele também convive neste ambiente. É mais fácil.

Teu atual projeto é o monólogo “Sem concerto”, que está em processo de elaboração e é 100% autoral. Isso indica um retorno com força total ao teatro?

Isso aprendi com o Antunes Filho: a pensar muito mais em dramaturgia, em criar, do que na técnica, no “como atuar”. Acabei elaborando essa história de uma mulher russa que conta as estratégias que criou ao longo da vida para transformar o filho em um grande concertista. E aí ela vai contando várias histórias absurdas no meio de tudo... é uma mulher bem estranha. Apresentei o projeto para o Sesc, passei nas seleções, agora só falta marcar uma data. Mas não deixo de lado a música, muito menos o cinema, a dança. Todas essas coisas caminham em paralelo. Além de atriz, bailarina e cantora, também consigo ser mãe. E limpar a casa (risos).

Trabalhos de Lorena

No cinema:

• O cheiro do ralo (2007, dir. de Heitor Dhalia)
• O satélite (curta-metragem, 2007, dir. de Bruno Mancuso)
• Fofo (curta-metragem, 2009, dir. de Patrícia Batitucci)
• O sonho bollywoodiano (2009, dir. de Beatriz Seigner)
• Hotel Atlântico (2009, dir. de Suzana Amaral)

No teatro:

• Medéia (2001, dir. Antunes Filho)
• Sem concerto (2010, em produção)

Na música:

• Contralto (2000)
• Tocatta (2000)
• Lorena Lobato (2009-2010, em temporada no bar Baretto)

Na internet

• www.lorenalobatoblog.blogspot.com
• www.monologosemconcerto.blogspot.com

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