sábado, 1 de agosto de 2009

Doação e transplante: desafio de saúde pública no Pará e no Brasil

Sistema de captação, doação e distribuição de órgãos existe no Pará, mas enfrenta dificuldades para se interiorizar. Número de doações também não é ideal.

GUTO LOBATO
Da Redação

(Publicado no Jornal Amazônia - Edição de 03/05/2009)

A exibição em rede nacional da série “Transplantes: o dom da vida”, apresentada pelo médico Dráuzio Varella todos os domingos no programa “Fantástico”, da Rede Globo, volta a chamar a atenção para um dos trabalhos mais desafiadores dos profissionais de saúde pública do Brasil: a doação e transplante de órgãos e tecidos. Avançado nas técnicas de captação e distribuição destes entre os mais de 68 mil brasileiros que estão na fila de espera do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), o País convive diariamente com a necessidade de viabilizar o prolongamento da vida destes pacientes; o problema é que, da constatação de morte encefálica ou decisão do doador em vida até a cirurgia de transplante, há um longo caminho, marcado por burocracias, entraves e pela constante corrida contra o tempo.

Os números mais recentes da revista Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, mostram que tanto a eficiência das equipes médicas e do SNT quanto a solidariedade dos doadores e suas famílias têm aumentado no Brasil. Só em 2008, houve 15% a mais de transplantes no País em relação aos anos anteriores – só de rins e corações, foram quase 5 mil procedimentos. Da mesma forma, o Pará cresceu 13% em doações de órgãos e tecidos.

Só que a taxa ainda é muito aquém das verificadas em outros Estados como Espírito Santo (que cresceu 65% em 2008), Pernambuco (44%) e Minas Gerais (39%) – a prova disso é que atualmente há mais de 1,6 mil pacientes na lista de espera do Estado, à espera de rins e córneas, majoritariamente. Ou seja: ainda falta um pouco de solidariedade por parte do paraense, seja na hora de doar órgãos de um familiar em quadro de morte encefálica, seja na hora de fazer uma doação em vida. As razões para isso são várias, mas a principal é a falta de conhecimento sobre o sistema de captação e distribuição de órgãos e tecidos no Estado.

Atualmente, o Pará está cadastrado pelo Ministério da Saúde para realizar transplantes de rins, córneas e coração, e os faz em dois hospitais públicos via Sistema Único de Saúde (veja quadro). O Hospital de Clínicas Gaspar Vianna (HCGV), referência em cardiologia, também caminha para ser credenciado para transplantes de coração. Além disso, é feita a captação de fígado para distribuição na lista nacional de espera do SNT, já que o procedimento ainda não é feito nos hospitais públicos paraenses.

Todo este serviço é coordenado no Pará pela Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Pará (CNCDO/PA), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa) que completa dez anos de atividade em 2009 e já contabiliza mais de 1 mil doações de órgãos e tecidos desde sua fundação. Segundo o médico patologista Paulo Cartágenes, atual coordenador da CNCDO/PA, um dos maiores desafios enfrentados pela central – que conta com pouco mais de 20 funcionários, entre médicos, psicólogos, assistentes sociais, técnicos e enfermeiros – é estimular a doação nas famílias e, por outro lado, capacitar mais equipes médicas no Pará para realizar o transplante.

“Todo ano, aderimos à campanha nacional de doação de órgãos, que ocorre no segundo semestre do ano. Por outro lado, não adianta apenas captar órgãos, é preciso ter uma rede de transplantes firmada no Pará. Por isso, lutamos para que tenhamos equipes cirúrgicas não só para o transplante de rins, córneas e coração, como também para os de fígado e outros órgãos. Queremos capacitar o Estado nos sete tipos que já são feitos no Brasil”, explicou Cartágenes.

Hospitais de médio e grande porte devem liderar captação

Para que uma doação dê certo, no entanto, não basta somente a boa vontade de médicos e a eficiência da CNCDO na hora de captar e distribuir os órgãos entre os pacientes da fila de espera: é preciso que, à hora em que se constata a morte encefálica de um paciente, haja uma comissão intra-hospitalar de doação de órgãos e tecidos – as chamadas CIHDOTTs – responsável por mediar o contato entre as famílias de doadores e a central estadual.

Composta por profissionais do próprio hospitar, entre médicos, técnicos, enfermeiros e profissionais da área psicossocial, a CIHDOTT deve existir em hospitais com mais de 80 leitos e ser capacitada constantemente pelas centrais estaduais de captação de órgãos – isso porque, segundo a psicóloga da CNCDO Telma Lúcia Souza da Silva, a ideia é que elas iniciem o trabalho de captação desde os exames confirmatórios de morte encefálica. “Na hora de optar pela doação, a família do paciente precisa se sentir bem e à vontade para fazer sua escolha. Por isso as CIHDOTTs são tão importantes, já que é preciso explicar aos parentes a importância do ato de doar e mostrar que ele é voluntário e livre de quaisquer pressões”, explica.

Durante este mês, a CNCDO centralizou atenções na capacitação da CIHDOTT do Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência (HMUE), hospital de referência em média e alta complexidade no Pará e que, mensalmente, registra entre 50 e 60 óbitos por mês – destes, cerca de dez viáveis para a doação, algo em torno de 20%. Só no último final de semana, por exemplo, duas mortes registradas por lá – de um adolescente de 17 anos e um homem de 33 – viabilizaram dois transplantes no Brasil, via Sistema Nacional de Transplantes.

Presidente da CIHDOTT do HMUE com oito anos de experiência na área, o neurocirurgião José Takau Yamaki avalia que hospitais de média e alta complexidade do Estado, como os Hospitais Regionais e os Pronto-Socorros Municipais de Belém, devem estar atentos para o assunto, pois são os mais suscetíveis à situação de morte encefálica e, consequentemente, à doação. “Por conta do perfil dos hospitais de maior porte, é importante que haja uma boa rede para captar órgãos de doadores viáveis e fazer a comunicação com a central estadual”, explica.

Rede de captação e doação de órgãos deve se interiorizar

Os números que mostram que a doação de órgãos no Pará ainda não é modelo nacional indicam, também, a necessidade de se interiorizar o serviço de captação e transplantes. Atualmente, os hospitais que fazem estas cirurgias via SUS estão concentrados em Belém. Também há três das seis clínicas oftalmológicas da capital que cobrem o serviço de forma pública (veja quadro). No interior, a única instituição cadastrada para fazer transplantes é uma clínica oftalmológica particular em Santarém, no Oeste paraense. Além disso, a pouca atividade das CIHDOTTs nos hospitais de interior – mesmo entre os Hospitais Regionais – ainda persiste como outro grande entrave para a abrangência da CNCDO no Pará, já que praticamente todas as doações contabilizadas desde sua criação são da capital.

Segundo a coordenadora de credenciamento de instituições de saúde da CNCDO, a enfermeira Glória Belém, um dos desafios, atualmente, é o de firmar equipes médicas especializadas no interior e submetê-las a avaliações do Ministério da Saúde. “O credenciamento para realização de transplantes demanda um grupo fixo de profissionais especializados para cada hospital, o que é algo raro no interior do Pará”, explica.

Enquanto o problema não é resolvido, quem precisa se submeter a um transplante no Pará precisa vir morar na capital ou, dependendo do órgão a ser transplantado, até mudar-se para outras capitais brasileiras. A situação é grave, mas, segundo Paulo Cartágenes, deve ser resolvida a médio prazo. “Já estamos firmando CIHDOTTs e equipes médicas atuantes no interior, para que pelo menos a captação seja mais frequente em municípios-pólos como Bragança, Altamira, Marabá e Santarém. Já as cirurgias serão resultado de um projeto a longo prazo”, avalia o coordenador da CNDCO.

Agricultor de Marabá está há sete anos na espera por um rim

Atualmente, o tempo médio de espera para um paciente paraense receber o órgão de que necessita oscila entre dois e três anos, segundo a CNCDO. Além da quantidade baixa de órgãos doados e captados nas centrais de doação, os índices de compatibilidade genética e imunológica entre doador e receptor podem estender este período por prazos incertos.

Já se vão mais de sete anos desde que o paraense nascido em Marabá João Souza Dias, 40, precisa gastar 12 horas semanais em sessões de hemodiálise no Hospital de Clínicas Gaspar Vianna. Diagnosticado com insuficiência renal desde 2002, ele é um dos que aguardam há mais tempo por um transplante de rim na lista da CNCDO.

A espera só fez dificultar a vida de João, agricultor que teve de largar o emprego e se mudar junto à mãe para Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, para dar continuidade a seu tratamento. “Faço sessões três vezes na semana, às terças, quintas e sábados. Mas não dá para trabalhar, até porque a gente fica muito debilitado. Tenho hipertensão e estou a cada dia mais longe de meu peso ideal”, lamenta João, que atualmente pesa apenas 48 kg.

Em todo esse tempo na fila, o paciente conta já ter chegado perto de receber um rim várias vezes. O problema é que a questão da incompatibilidade genético-imunológica fez com que os rins que apareceram na lista de doações fossem encaminhados a pacientes com maiores chances de recuperação. Para João, tudo poderia ser transformado se houvesse mais solidariedade. “Fico muito triste, pois não tenho condições de continuar minha vida enquanto isso não for resolvido. Se houvesse mais doações voluntárias, talvez minha situação e a de milhares pudessem ser resolvidas sem tanto sofrimento”, avalia.

Doação e transplante de órgãos no Pará
Fonte: CNCDO/PA

· Transplantes feitos no Pará: Rins, córneas e coração
· Transplante mais frequente: Córnea (75%)
· Hospitais públicos em que se pode fazer via SUS: Hospital Ofir Loyola (todos), Hospital Adventista de Belém (todos), Hospital de Clínicas Gaspar Vianna (transplante de válvulas cardíacas) e clínicas oftamológicas (córneas)
· Como fazer: É preciso que médicos encaminhem a situação do paciente à CNCDO/PA, que irá incluí-lo nas listas de espera estadual e nacional;
· Tempo médio de espera na fila do Estado: 2 a 3 anos
· Pessoas na fila de espera (abr. 2009): 1,6 mil (740 de rins, 890 de córneas e 3 de corações)
· Doações de órgãos e tecidos (jan. a abr. 2009): 43
· Transplantes feitos no Estado (jan. a abr. 2009): 51

O passo-a-passo da doação

Da constatação da morte cerebral até a captação e distribuição dos órgãos e tecidos, há um percurso que envolve a ação de gestores das centrais de doação e cirurgiões especialistas. Além disso, as CIHDOTTs têm a função de acionar a central e, ao mesmo tempo, dialogar com as famílias de doadores viáveis. Todo o trâmite deve transcorrer em questão de horas – às vezes, em menos de três ou quatro. Confira o passo-a-passo:

1 - Constatação/captação - Diante do quadro de morte encefálica, a equipe da CIHDOTT é chamada. Caso a doação seja autorizada, abre-se um protocolo, atualizado de seis em seis horas, em que são testadas a atividade cerebral, a reação a estímulos e a presença de sinais vitais no paciente;

2 - Exames hematológicos - Constatada a morte cerebral, o doador é encaminhado ao Centro de Hemoterapia e Hematologia do Pará (Hemopa) para fazer exames de sorologia, para ver se há alguma doença ou infecção no sangue. Também é feito um exame de histocompatibilidade, para ajudar na procura por um receptor viável;

3 - Exame confirmatório - Após os exames sorológicos, há uma fase complementar para confirmar a morte cerebral, disponível via SUS no Pará somente pelo Ofir Loyola. Doppler Transcraniano, Mapeamento Cerebral (Eletroencefalograma) e Arteriografia Cerebral são as técnicas mais utilizadas;

4 - Retirada - Apenas hospitais credenciados podem fazer a retirada dos órgãos - no caso do Pará, o Ofir Loyola e o Hospital Adventista têm a cobertura do SUS. Além de rins, coração e córneas, o Estado está cadastrado para fazer a captação de fígado e enviá-lo ao Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Fora os hospitais públicos, há sete clínicas oftalmológicas particulares no Estado (seis em Belém e uma em Santarém) que fazem a retirada de córnea, sendo que três delas atendem pelo SUS;

5 - Distribuição - Nesta etapa, a CNCDO fica responsável pela distribuição dos órgãos recolhidos no Estado (rins, córneas e fígado) para os pacientes que estão na lista de espera. Corações não entram nesta lista, já que os que são recolhidos no Pará vão para o banco de valvas cardíacas da Santa Casa de Curitiba (PR). Caso não haja receptores compatíveis no Pará, os órgãos são disponibilizados para doação na Central Nacional;

6 - Transplante - Antes da cirurgia, é preciso ponderar as chances de rejeição junto ao receptor e avaliar o risco cirúrgico. Se tudo estiver OK, a cirurgia pode ser feita no Ofir Loyola ou no Hospital Adventista (transplantes de rim, córnea e coração), ou mesmo no Hospital de Clínicas Gaspar Vianna, que já está credenciado para o procedimento de válvulas cardíacas. Os transplantes de córnea também podem ser feitos nas sete clínicas particulares.

Um comentário:

  1. Gostaria que vocè me enviasse o contatos de suas fontes do CNCDO/Pa, pois estou elaborando minha monografia de m programa de pósgraduaçao na Espanha e preciso de dados atualizados.
    Parabéns pelo artigo.
    ( daniela.ledo@gmail.com)

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